Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

SOBRE OS LIVROS DE GLORIA HORTA

                    




Sobre Sangria

Artur da Távola

O destino de um livro é sempre misterioso. Independe das aflições do autor. Sofre, é certo, alguma influência do esforço divulgador deste, porém é irrelevante. O livro é lento. Muito! Ensina ao autor paciência e a suportar a dor das indiferenças. É como planta. Nada muda o ciclo de sua expansão. Por isso, prosseguir é a única virtude do escritor.

Com que força explode Sangria! É um livro em carne viva, tudo funcionando com o registro agudo aberto, expressão de uma arte que se pretende mais expressiva do ser que preocupada com o belo burguês. Parabéns! E lendo aquele “Amor III”, há que parabenizar o destinatário Jorge.

Grato por fazer-me merecedor de sua atenção no livro de estreia. Nunca pare de escrever! Principalmente quando ache que não vale a pena. Ferir o silêncio com vida é a missão do verso. Abraço amigo.
Artur da Távola. 1984
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Doc Comparato


Sim, Glória H mexe com as feridas abertas da classe média carioca; mais precisamente da mulher classe média. A média da vida, os temas médios: amor, morte, mulher descasada, mãe, casamento, Búzios, vai do cheiro de gasolina aos eflúvios da mente, menstruação e esperma. E, por isto mesmo, um leitor desavisado pode confundir o médio com mesmice, pensar que os assuntos estão batidos e que sua poesia é lugar comum. Ledo engano. Com uma seleção vocabular apurada e manipulando a palavra certa, ela arma um dramático móbile poético. Com tiras de realidade e pedaços de absurdo, constrói um painel agudo e doído da nossa média existência. Emociona. Emociona e faz doer; muito. Glória H amplia, vasculha feridas que atropelam nosso dia-a-dia e, como quem termina um ato cirúrgico, cauteriza. Sempre com poesia; mas sem anestesia.
Doc Comparato
Rio/Búzios/Rio. 9 de abril de 1984


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Artur Xexéo


(...) Os pedaços poéticos de Glória Horta fluem torrencialmente como as confissões de uma bem-sucedida sessão de psicanálise. Aí está a trajetória de uma mulher que beira os trinta anos. Não é muito diferente de outras trajetórias de sua geração; Glória é daquela turma que, quando chegou à universidade, encontrou os diretórios acadêmicos fechados. (...)
Glória sempre teve bom texto.
Por isso, na faculdade de comunicação, seus colegas (e eu era um deles) imaginavam para ela um futuro de grande jornalista ou bem-sucedida redatora publicitária. Naquele tempo, Glória já era a poeta e a gente nem percebia, perdidos na certeza concreta de significantes e significados. (...)
Agora, ela divide a poesia com a gente, como numa terapia de grupo.
Aproveite: a leitura de seus versos é reveladora de uma geração.
Às vezes incomoda, às vezes provoca puro prazer.
Como os reflexos de um espelho.

Artur Xexéo – jornalista. 1984


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Sobre Sexo Urbano


É o fim. Era uma vez o mundo. A cidade esgotou seu papel na história da humanidade. Criadora de multidões, ela inventou a solidão grupal e o estilhaçamento do indivíduo. Ela é o labirinto, a vertigem e uma metáfora profana para o inferno. (...) Perdidos do rosto do real, só nos resta inventar uma nova face. Estamos diante dos espelhos da cidade como quem busca uma utopia. (...)
Tudo é ninguém. E Sexo Urbano está no epicentro desse esquartejamento. Desgovernados, sem perspectivas, inauguramos uma certeza: vivemos num mundo desumano.
Sexo Urbano é como se fosse o registro de uma câmera implacável. Uma câmera que seguisse um ser no seu dia-a-dia em sua rotina urbana. Uma câmera que perseguisse seu desnorteado vaivém entre engarrafamentos, mendigos, amores, risos, crises, supermercados, praias, contas, filhos, pais, mães, falências, cheques, fundos, inflação, agendas e transas descontínuas.
Sexo Urbano é uma anunciação. Parece que o ser humano chegou ao fundo se suas potencialidades. Estamos em plena mutação. Num mundo sem deus nem magia, num mundo que tem como referencial a precariedade de todos os sinais, num mundo entregue a seu próprio fim.
Sexo Urbano é uma antena tentando captar a dor, a poesia e o humor de nossa média existência.
Ler Sexo Urbano é como caminhar entre ruínas de moral, valores e costumes que agonizam.
E se desesperar por não poder ver - como num espelho, como num filho - nossa futura face.
Seja bem-vindo ao inferno de ser igual a todo mundo.
Os editores. Editora Achiamé. 1988
 
 
 


Sobre Borboleta Sumaríssima

 

Doc Comparato

 
Hoje é longo 
 
Nelson Rodrigues afirmou que “o jovem só pode ser levado a sério quando fica velho”. 
Poderia ser só uma frase de efeito, se não fosse verdadeira muitas vezes. 
Seria esse o caso de G. H.? 
Em Borboleta Sumaríssima nos deparamos com a beleza da poesia através da mais avassaladora das melancolias, a da perda. 
Os poemas fustigam a morte dos pais, intrigam o falecer dos sonhos, questionam o fim da juventude, zombam da agonia da família e se rendem à hemorragia do tempo que leva até a memória embora. 
Enfim o livro teria tudo para ser uma coletânea de textos sombrios, se G.H. não nos surpreendesse com cócegas no cérebro. Vencendo a tristeza intrínseca do tema com uma seleção de idéias e vocábulos bastante pessoal, ela alcança momentos radiantes tanto na esfera do pensamento 
quanto na da palavra. A leitura torna-se imperdível e, para maior proveito, recomenda-se que seja desfrutada aos golinhos. 
E com o sorriso nos lábios e a lágrima debruçada na pupila, concluo que G.H. contradiz a firmação de Nelson: primeiro porque não envelheceu, renasce a cada verso, e encaixa toda a seriedade do viver numa linguagem atual e criativa, num hoje poético. Parabéns. 
Doc Comparato. 1999
 
 

Elisa Lucinda

O voo da borboleta azul 
 
Era meados dos anos 80 na gostosa e velha Ipanema azul. Sol batia na gente rio de janeiro, na gente carioca, na gente capixaba chegada agora, como eu. 
Uns olhos azuis fumegantes brotados de um fundo moreno diziam poemas de cor entre os varais de poesia na praia. Era a Glória. Adorou meus poemas e me convidou pra dar uma canja no Manga Rosa, um bar muito bacana lá na Dezenove de Fevereiro, onde ela apresentava um espetáculo com música e poesia. Disse que eu ia adorar. 
Era a Glória. Adorei e o dono do bar me contratou. 
Ficamos amigas mais forte, nossas poesias dialogaram entre si fartamente. 
Assim nasceu nosso show poético que batizamos de A Hora Agá, com direito a violão do Jorge e berimbau do Nestor Capoeira. Com muita dedicação, plantávamos. 
Havia um forte movimento de poesia falada e eu acabara de entrar nele pela madrinhagem daquela linda poeta. 
O Sangria, seu primeiro livro, um sucesso na boca daquela geração. Seu poema hit, Amizade Dolorida, era o máximo. Todo mundo tinha na cabeça e/ou no coração ao menos um pedaço. O poema pra sereinha filha Maíra ser feliz e mulher, tudo virava era poster na casa da gente. 
O tititi de nossos versos prosseguiu por outros bares, outros bairros, outros Búzios, lágrimas, amores e gargalhadas. 
Depois Glória escreveu o romance Sexo Urbano, uma prosa sedutora de se ler. E daí foi ser Penélope das lãs e das linhas. Tecelagem, fazer mestrado em tramas. 
Nesses anos, de vez em quando, ela numa festa, ela numa coincidência de Ipanema, de barraqueiro, de Batista, uma estória nova, um amor forte um abraço poemático e tchau. 
Agora, na roda linda da fortuna, os versos nos tornam de novo assíduas parceiras, estudando poesia, provocando poesia e ela volta a dizer versos na Escola Lucinda de Poesia Viva. Sempre os disse muito bem. Que saudades dos versos ditos pela boca de Glória. 
No meio da matança dessa saudade chega a mim sua jóia preciosa: Borboleta Sumaríssima. 
 
Um mútuo antropofagismo se apossa do meu encontro com esse livro: é um tal de devora daqui, devora dali. Garrei nele, ele garrou em mim. Levei ele pra todos os lugares, viajei com ele, fui pra longe, fui pra perto, sempre lendo relendo decorando verso sem querer, lendo pros amigos ouvirem. Borboleta Sumaríssima acompanhou-me em aeroportos e estradas, hotéis e pousadas, ao lado de Quintana, Manoel de Barros, Drummond, Adélia e outros, esses meus amiguinhos de sempre.
 
É assim que sei quando um livro é bom: quando não se quer largá-lo, quando se tem saudade dele lá no meio do supermercado e o tal objeto cheio de páginas ficou em casa em cima do sofá, que raiva! 
Borboleta Sumaríssima é assim. Um panapaná resumo de todas as borboletas que parece ser a cada hora uma só e por isso sumaríssima. A gente vai dando uma morridinha doce num poema, amassa uma asa, uma mãe adoece e a gente emagrece junto com aquele verso. Depois a gente continua a morrer pra renascer em Búzios, numa esperança teimosíssima que se espalha dentro da caminhante poesia de Glória. Reconheço o roteiro da fala dessa escritora no verso escrito dela, seu poema balbucia, soletra, conversa no seu estilo especial de ser sinopse e cenas o tempo todo. São filmezinhos, tramas de palavras sinceras arrumadas para permanecerem no estado fresco 
daquela mirada poética original:
 “Voltassem os peixes. 
Compraríamos sofás novos. 
Mamãe teria filhos bem humorados 
que trariam boas novas. 
Poderia revê-la gorda no vídeo, de noite, 
escondido, depois que todos dormissem. 
Envelheço porque vou perdê-la”. 
 
Eu, que já tinha perdido a minha, dei de envelhecer com o poema e fui visitar em mim o momento anterior ao horror de perdê-la. 
 
Depois de uma lacuna de dez anos sem publicar, Glória vem com esse livro revelar novo título para a sabedoria de durar nos tempos, aquela famosa sabedoria que nunca se tem aos vinte anos:
 “Asas guardadas na mochila, comemoro o dia novo. 
Riquezas subsolas. 
Estratégia do amadurecimento”. 
 
Como sempre foi, Glória não faz poesia de esconde-esconde, daquelas que ninguém entende o assunto. Tampouco é uma poesia que se envergonha de sofrer bonito assim. Mesmo morrendo ou renascendo a cada página, Borboleta Sumaríssima não consegue ser um livro triste. Tem a habilidade de quem sabe versar tocando no triste como mote mas não como morte do amanhã: 
“Mãos de fogo
 cravadas na cintura.
Largue meus pneus. 
Quero ser veloz, 
livre e louca, 
mesmo velhinha”. 
 
Sensível e urbana, diz que: 
“Um saldo é chique como um salto”. 
 
Bem-vinda à nossa estrada que é sua, aquela que você generosamente me apontou e da qual eu vivo até hoje com orgulho, amiga. Nossos poemas ainda dialogam livres no quintal da cidade. Bela literatura a sua que não larga a saia compridíssima de seu dom. Fumegam antigos novos olhos azuis sobre as asas iguais. O leitor provará o sabor deste presente. É a Glória. 
Elisa Lucinda. Rio, 05 de julho de 1999 
 

 



Leila Alvarenga Barbosa

Professora de História pela PUC, Mestranda em Social Work na University of Michigan Ann Arbor
Cheguei no Rio há dois dias. Reencontro minha amiga Glória. Ganho seu novo livro. Li entre uma madrugada e outra. Será que ela sabe que deu voz  à mulher na menopausa? Será que percebeu que iniciou um movimento? Será que sacou que vou segui-la? Será que sabe que vai assustar as mulheres na sala dos cabeleireiros e spas? Enlouquecer os terapeutas? Será?
Comi as letras de dor, graça e ritmo. Deu vontade de chorar mas não tive tempo andando de página em página com muita pressa.
Não sou crítica literária nem pretendo falar bonito. Só sei que li o renascimento da tragédia.
A poesia da Glória H aliviou minha velhice. E me fez muito velha. Glória não sai de si e inclui todas as mulheres do mundo. Uma arqueologia do envelhecimento, que descontroi a velhice de cada dia.
É coisa de mulher, com certeza . Mas não de um feminismo fácil das “mulheres resolvidas”. Glória H não resolveu nada, graças a Deus! Está em carne Viva! Fala do que ninguém quer falar. Não acompanha a moda nem a elegância babaca de uma zona sul que ficou chata e besta. Não quer ser sutil e discreta. Não discrimina nem incrimina a vida pela santa dor de cada dia Amém.
Libertando nosotros aprisionados pela sociedade do espetáculo, acordou cedo, foi ao cais e desafundou aquele velho navio. Glória, minha capitã da nave louca.
Um beijo.
Sua alegria.
Leila Maria Alvarenga Barbosa

Marcia Cardoso

Tradutora, revisora e eterna leitora de Glória Horta
Abril 2010

Conhecer Glória Horta foi uma consequência inevitável de Sangria, um de seus livros, publicado nos anos 80.  Que fenômeno era aquele que não me deixava desgrudar os olhos das palavras a entornar vida, página após página? Eram palavras com respiração, febres, berros, contrações. Que relação era aquela da autora com o verbo, que se dava de forma tão despudorada, verdadeira e imoralmente bela?
Por sorte, à época, um amigo em comum possibilitou nosso encontro, e eu tratei logo de pegar diretamente com ela dez exemplares de Sangria para presentear algumas pessoas.  A reação de encantamento dos meus presenteados com as palavras de Glória foi a mesma, o que não me causou surpresa.
Alguns anos se passaram e eu a perdi  de vista. Mas seus textos, suas prosas, seus versos, ficaram entranhados em mim, pedindo mais. E eis que chegam os anos 90, e com ele a internet, que tornou muito mais fácil a minha busca por Glória Horta (obrigada, internet, por me permitir reencontrá-la).  A partir de então, pude estabelecer uma relação mais estreita não só com a autora, mas também com a autora da autora, ou seja, com a ‘pessoa’.  Ambas se confundiam. Para minha felicidade, nos tornamos boas amigas explorando as possibilidades virtuais.

Não consigo imaginar Glória dissociada das palavras, fazendo outra coisa que não seja escrever, escrever e escrever. É como se essa mulher, escritora, vivente e sobrevivente, tivesse vindo ao mundo com a missão exclusiva de traduzir os espasmos da existência em prosa e verso, dançando nua pelas palavras como quem liberta a si e aos pobres mortais dos próprios limites.
Hoje, modestamente, ela dá ao seu mais novo livro o título “Finita como flores”.  Como se Glória Horta tivesse algo a ver com finitudes. Tudo nela é infinito, de eternos recomeços, vendavais e calmarias. Mas as palavras jorram como água de fonte sem que eu lhes conceda um sentido, diz a autora no texto que dá nome à obra. Ao que eu complementaria: as palavras dela  jorram aos cinco sentidos de quem bebe dessa fonte, ainda que não lhes seja concedido um sentido.
Nas letras e na vida, Glória Horta me ensinou a aprender o humano, demasiadamente humano.
Márcia Cardoso (Meraluz)

Lilia Trajano

Mestre em Serviço Social, Educadora de Rua, Assistente Social, e poeta

"Perdi a moça que me habitava. Quem conheceu guarde o retrato, quem não viu perdeu a chance" (Glória Horta)

Glória, lendo-te mais do que infinitas vezes
Eu conheci a moça que te habitava. Linda como toda flor o sabe ser mesmo não sendo primavera. Encontrei-a por acaso dentro de um coletivo que vinha de Laranjeiras, você falava alto, declamava versos sorrindo e o ônibus cheio indo não sei bem para onde. Eu que não me habitava naquela altura, estava perdida dentro de mim mesma sem saber aonde ir. 
A vida passou e resolvi, depois de encontrar a moça que te habitava, viver, lutar contra tudo e contra todos, contra os preconceitos, não tinha medo de canhões nem de tiros certeiros. A poesia se instalou em mim, veio como praga, veloz como teu riso, tua dramatização, tua emoção. Vesti uma calça colorida e voltei à Favela, ela ainda estava lá enfeitada de bandidos, de casas pobres, de pessoas simples e pensei: é aqui que começo de novo, com novo sorriso nos lábios, flores ao invés de armas empunhada na cintura, poesia ao invés de tiros no escuro, sou eu de novo inteira sem ninguém, entregue à poesia. E acompanhei dali por diante a moça que te habitava, que moça alegre e cheia de poesia, cheia de vida, me trouxe de volta à vida.
Hoje a moça que te habitava continua sorrindo olhando para mim, na cabeceira da minha cama, ando com ela desde então porque tinha medo de perder o que se instalou dentro de mim quando te conheci.
Finita como flores nos traz de volta a mesma Glória de Sangria, sem seus cachos no cabelo é certo, sem a boina preta, mas, com a mesma força de outrora, com o mesmo sorriso estampado no rosto da foto da moça que te habitava e declamava a Amizade Dolorida.
Trago comigo Sangria: entre os livros da eternidade da minha mocidade e quando te leio revejo os teus gestos infinitos, teu jeito menina, mulher, mãe, avó, andarilha, és sempre tão nova, e ao mesmo tempo, tão segura como se todo tempo fosse só isso a tua vida, porque Gloria Horta é assim, infinita como o perfume das flores.

Lilia Trajano, poeta carioca perdida em Lisboa. 2010

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