Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

21. Quem pariu Mateus?


        

Feliciana e Joaquim
       Feliciana foi a única que casou. Os dois irmãos eram padres, as três irmãs ficaram para titia. Joaquim, seu marido, era um homem inteligentíssimo. Trabalhava com pedras preciosas, como quase todos os homens em Diamantina. Quando bebia, discursava que era uma beleza. Bebia mais e acabava literalmente na sarjeta. Foi internado no Hospício de Barbacena, que hoje é museu.    
Quando tinha alta, Joaquim fazia filhos. Feliciana paria todo ano. Sobreviveram nove filhos, no total. Joaquim morreu em Barbacena e foi enterrado como indigente. Feliciana e seus irmãos passaram dos cem anos. Morrer não era interesse daquela gente. Os filhos não tiveram o mesmo destino, começaram a morrer antes.
O casal deixou nove filhos, vinte e cinco netos, cinquenta e quatro bisnetos. Alguns alcoólatras, muitos advogados, médicos, alguns escritores, e um porteiro, que com vinte e três anos estava abaixado em frente ao prédio em que trabalhava, quando um vergalhão de metal medindo dois metros de comprimento caiu do quinto andar e atravessou seu cérebro, saindo entre os olhos. Por três centímetros, teria ficado paraplégico, e por um centímetro ficaria cego. Sobreviveu ileso.
       Joaquim, Feliciana, seus irmãos e irmãs já morreram. Dos nove filhos, só o porteiro está vivo, muito vivo e muito bem, caminhando para os cem. Morreram uma neta e um bisneto, estranha fila, essa que vai para o além. Os outros vão bem.
      
       Juscelino e Maria
Juscelino e Maria tiveram cinco filhos homens, todos de olhos azuis. No natal, Maria arrumou os meninos e disse: não saiam daí que eu vou buscar minha bolsa. Subiu para o segundo andar da casa, pegou a bolsa, desceu e não encontrou os meninos. Tinham ido na loja colada à casa, e estavam olhando as luzes piscando, o Papai Noel de pano, e um mundo de possíveis presentes, quando um carro desgovernado atropelou as cinco crianças. O mais novo ficou paradinho, entre cacos de vidro e sangue. Olhou para o lado e viu seus irmãos, todos feridos. Olhou para a porta e viu entrar sua mãe. Tranquilizou-se, sorriu: Agora não morro mais. E desmaiou. Salvaram-se todos.
       Sebastiana, empregada de Juscelino e Maria, deixara sua filha Mariane num colégio interno no interior de Minas, não tinha condições de criar. Aos dezessete anos, Mariane conseguiria um emprego de servente num hospital mas, como sentira-se rejeitada pela mãe, vingava-se, rejeitando-a. Não aceitaria ajuda, quase não telefonaria, nem deixaria a mãe saber seu endereço. Depois de muito implorar e pedir perdão, Sebastiana desistiria da primogênita. À beira da menopausa, Sebastiana engravidara de novo, e encarou a gravidez como sua segunda chance. Continuou trabalhando até o dia em que deu à luz uma menina de olhos azuis, sozinha, no quarto de empregada, sem dar um ai. Do pai, não se sabe. Todos atribuíram a paternidade a Juscelino, que negava, com jeito, para não magoar a menina, que cresceu junto de seus filhos. A menina foi batizada com o nome de Luíza, e Sebastiana pôde se redimir da culpa de ter abandonado Mariane numa espécie de orfanato.
       Juscelino morreu de velho, sem dar um ai. Conheceu quatro dos seus cinco netos. Luíza ficou adulta e pediu à mãe que a ajudasse a encontrar seu verdadeiro pai. Sebastiana deu alguns telefonemas, mandou algumas cartas, e um dia acordou Luíza e deu a ela um papel. Aqui está o nome de seu pai, Josué, e o endereço dele. Luíza procurou Josué, fizeram exame de DNA, deu positivo. Tinha sido porteiro do prédio onde moravam todos. O pai biológico não deu muita bola. Luíza entrou na justiça, ganhou o sobrenome do pai, algum dinheiro de vingança, e limpou o nome de Juscelino.
       Maria adotou três crianças, mesmo em idade avançada, quando os filhos saíram de casa. Seu filho mais velho era alcóolatra e morreu vomitando o fígado. Uma das crianças adotadas morreu atropelada. Estranha fila, essa que vai para o além. Os outros estão bem.

Lygia e José
       Lygia teve quatro filhos com seu marido, Dr José. O quinto filho de Dr José, ele trouxe nos braços para casa. Quando viu o marido entrando em casa, de madrugada, segurando um pequenino nenén, Lygia quase deu um grito. Dr José, sem jeito com o recém-nascido, tremia e gaguejava. Olhou nos olhos arregalados da esposa, desesperado, durante alguns segundos. O filho é meu, a mãe morreu de parto, disse, aos prantos. Por favor, por Deus, quero que ele seja nosso. Lygia olhou a criancinha enrugada, e chorou. Pegou o bebê no colo, enxugou as lágrimas do marido em seu vestido, e aceitou. Lygia criou os cinco filhos de José, e amou os cinco da mesma forma. Como Dr José, todos são médicos. Tiveram dez netos. O décimo - primeiro nasceu em janeiro e morreu em março do mesmo ano. Nascera com um problema sério no coração. Paulo, um dos filhos de Lygia e José morreu matado, por causa de uma índia. Deixou filhos, viúva, e bens. Lygia e José vão ao médico quase todos os dias, empenhados em chegar ao aniversário de cem. Estranha fila, essa que vai para o além. Todos vão bem.

       Dona Mariza e Seu Álvaro
Dona Mariza e Seu Álvaro não conseguiam ter filhos. Ela engravidava e perdia. Perdeu fetos inteiros. Fez de tudo, apelou para Deus e para a Medicina. Irene, a moça que trabalhava em sua casa, engravidou do porteiro, Josué. Nasceu um menino forte e bonito, que o padeiro não quis registrar. Irene não conseguia mais trabalhar, por causa do recém-nascido. Num domingo qualquer, Dona Mariza acordou na hora de sempre e nem tinha café pronto. Foi no quarto da empregada e encontrou Irene e o bebê aos prantos. Uma desordem de fraldas, mamadeiras, paninhos espalhados pelo quarto pequeno. Dona Mariza sentou-se na beirada da cama, pediu calma pra Irene e perguntou:
       - Tua mãe não te ajuda?
       - Minha mãe nem sabe. Meu pai me mata.
       Dona Mariza pegou o bebê, e conseguiu acalmá-lo. Ele dormiu em seu colo, enquanto ela andava pra lá e pra cá sacudindo o menino, cantando baixinho, com os olhos cheios de lágrimas boiando. Seu Álvaro fez café e colocou a mesa. Irene arrumou o quarto, tomou um banho, penteou os cabelos descabelados, pegou uma sacola, colocou algumas roupas, e fugiu pela porta dos fundos.
       Dona Mariza deu banho no bebê, mamadeira, levou-o para o quarto enfeitado que esperava seu filho, colocou o menino no berço. Ele dormiu. Ela sorriu. Onze meses depois tiveram o primeiro filho biológico, um ano e oito meses depois, nasceu a primeira filha biológica, dois anos e sete meses depois, dois gêmeos. Cinco meses depois Dona Mariza fez seu primeiro aborto consentido. Sete meses depois ligou as trompas. Irene apareceu na porta três anos depois, grávida de sete meses, de aliança no dedo. Só queria saber do menino, disse. Dona Mariza gritou pelo marido, feito louca, e ele veio de revolver na mão. Se aparecer aqui de novo, te mato, disse, apontando o gatilho para Irene. Estranho mundo, onde a pessoa vai e vem. Todos vão bem.

       Paulo e Iara
       Paulo era médico e noivo de Iara, uma indiazinha de dezenove anos que conheceu no hospital. Tirou a virgindade da moça. O cacique apareceu e organizou o casamento dos dois, de véu, grinalda, discurso e buquê de flores atirado para trás. Paulo era quinze anos mais velho que ela, e mil vezes mais assanhado. Enquanto ela cuidava de casa, da cozinha e da roupa, ele tomava cerveja depois do expediente, e volta e meia chegava em casa muito tarde e com marcas de batom na camisa que Iara lavava, aos prantos.
       Iara não engravidava. Já tinham dez anos de casados quando Iara entrou para a Igreja. Despejava na casa de Deus toda sua criatividade. Cantava no coro da igreja, organizava as quermesses, festas, fazia prendas juninas, ajudava até na contabilidade. De vingança, perdeu o desejo pelo marido. Quando ele a procurava, ela mentia que estava menstruada, com dor de cabeça ou pagando promessa. Uma noite, Paulo chegou tarde e tomou Iara à força. Ela ficou machucada no pulso e no rosto. A vagina ardendo. Paulo gozou e dormiu como um anjo. Quando acordou de ressaca chamou pela mulher e ninguém respondeu. Viu roupas jogadas pelo chão. Entendeu. A índia havia saído de casa. Procurou na igreja, na aldeia, na vizinhança, e Iara não apareceu.
       Chamou polícia, foi no terreiro, fez promessa, frequentou a igreja, sondou amigos. Nada. Paulo chorava pela casa gritando o nome de Iara. Seus pais, Lygia e José, levaram Paulo para a casa deles, chamaram psicólogo, o tempo passou e Paulo ficou bem. Índio é outra cultura, diziam. Ficou combinado assim: índio é outra cultura. Paulo era jovem, médico e bonito, casou com uma de suas amantes esporádicas, a Luíza, filha de Josué, moça bonita de olhos azuis. Nove meses depois tiveram o primeiro filho.
       Paulo continuava o mesmo porque os homens não mudam. Tomava suas cervejas depois do expediente, tinha suas amantes esporádicas, e não deixava faltar nada em casa. Tiveram, ao todo, três filhos. Contando com o caçula, que não era de Paulo, mas que ele havia concordado em registrar como seu, sem muita conversa. Luíza havia sido sincera, e Paulo não quis ouvir detalhes. Quer continuar casada comigo? Quero, disse ela. Então está tudo bem. Vamos esquecer o resto, propôs Paulo. Luíza agradeceu em silêncio, as crianças se parecem, e se dão muito bem. Sábado e domingo Paulo ficava em casa com a família. Um domingo por mês, Lygia e José reuniam os filhos, os netos, e contavam suas idas e vindas aos médicos, teimosos em viver até os cem.
       Seus filhos já estavam todos na escola, bem crescidinhos, quando Paulo, de carro, viu Iara andando na rua. Estacionou de qualquer jeito e seguiu a moça. Ela morava numa casa simples, num bairro simples, nos fundos de uma igreja, e o marido era o pastor. Paulo reconheceu o pastor, rondou a vizinhança até não mais poder, era como um fantasma, via tudo e não era visto. Estava mais gordo, meio calvo, e totalmente desesperado. Desmarcava clientes, adiava palestras, faltava a reuniões, tudo para espiar a índia.
       Preparou-se para enfrentá-la. Primeiro fingiu que não estava nem aí. Oi, tudo bem? Ela foi educada e fria. Ele pediu que ela ficasse um pouco, que precisavam conversar. Esconderam-se no carro dele, numa rua deserta. Ele chorou, abraçou-a, pediu um perdão atrasadíssimo, e repetiu tantas vezes que ainda a amava, que ela acreditou e chorou chorou chorou.
       Paulo e Iara passaram a se encontrar às escondidas, e amaram-se como nos tempos de noivado, em motéis, no carro, em bancos de jardim antes de nascer o dia, no meio da noite enquanto o mundo dormia, em qualquer lugar. Estavam no carro, nus, felizes, numa rua de terra, tão deserta quanto Marte, rindo de nada, rindo de amor só, falando bobagens, quando o pastor surgiu sem ruídos, atirou em Paulo e se mandou. Paulo morreu nos braços da índia, nu.
Lygia, José, e Luíza, em comum acordo e por causa das crianças, abafaram o caso. Iara tentou fugir para a aldeia, mas todos viraram-lhe as costas. Voltou para a casa do pastor, muito magra e abatida, entrou sem dizer nada, viu louças na pia e lavou. O pastor chegou da igreja, viu a índia, perguntou pela janta, jantou, ninguém tocou mais no assunto.
Estranha fila, essa que vai para o além.
Estranhas pessoas, estas que vão e vêm.

       Irene
       Irene tocou a campainha da casa que havia sido de Dona Mariza e Seu Álvaro, ambos falecidos. Os filhos estavam casados, menos o mais velho, que também se chamava Álvaro, e morava sozinho na casa. Irene cumprimentou o homem maduro e bonito, seu filho, reparou nas mechas brancas que tinha no cabelo, e apresentou-se como uma antiga empregada da casa. Não mentia. Viúva, tinha uma filha, estava precisando de emprego. Álvaro simpatizou-se com aquela senhora que falava de seus pais com intimidade, e ela foi contratada para trabalhar de novo na mesma casa, e dormir de novo na mesma cama, onde tantas noites chorara com seu filho pequeno. Durante meses ela manteve a casa limpa e a comida pronta. Nos fins de semana visitava a filha. Uma noite, Álvaro acordou com um barulho forte. Correu para ver e encontrou Irene caída no chão, agonizando. Tivera um enfarte súbito. Álvaro chamou a ambulância e a filha de Irene, Márcia. Álvaro e Márcia acompanharam todos os procedimentos juntos, e estavam ao lado de Irene quando ela fechou os olhos. O enterro foi simples e com poucos amigos. Ninguém se lembrava de Irene. Mesmo assim, os irmãos de Álvaro compareceram todos, menos Ilda. Álvaro perguntou se Márcia não queria ficar uns tempos em sua casa, até que passasse o susto. Márcia aceitou. Cozinhava, lavava e passava, e de noite esperava Álvaro para ver novelas, jogos, filmes, na TV.
Uma noite, Álvaro abaixou o som da televisão, olhou sério para Márcia, e disse que ia contratar uma empregada, que não queria mais Márcia cozinhando pra ele. Ela não disse nada. Não era preciso. Sorriu. Ele pediu que ela se casasse com ele e ela aceitou, muito feliz. Esperava por isto desde que o vira pela primeira vez. Custaram a dormir juntos como marido e mulher. Álvaro, antes de consumar o casamento, contou para Márcia que não conhecia muito do amor, e pediu paciência. Revelou que apaixonara-se na infância. Era jovem demais, a menina engravidou, e desapareceram com ela. Nunca mais vira a menina, confessou. E mentiu, dizendo que nunca mais soubera dela. Álvaro havia passado a juventude e parte da vida adulta sozinho, sem mulher. Homem feito, teve um caso longo com uma mulher casada, Luíza, com quem teve um filho, que foi registrado em nome do marido, Paulo. Álvaro não se sentia maduro pra assumir uma mulher, um filho, dois enteados, e enfrentar um marido traído. Afastou-se, na data em que foi confirmada a gravidez. Quando soube que o marido de Luíza havia sido assassinado pelo marido traído de uma índia, Álvaro telefonou, e pediu pra conhecer o filho, mas Luíza respondeu que a criança não podia mais ser apresentada a ele como pai. Tarde demais, disse ela.  Eu teria largado tudo, mas isso foi antes.
Desta vez, Álvaro afastou-se de Luíza por vontade dela. Duas amantes só, em toda a vida, era um homem sem experiência, precisava que Márcia desse tempo ao tempo. Lamentou: com ele, as coisas não davam certo. Comigo será diferente, disse Márcia. E providenciou o casamento. Os irmãos de Álvaro vieram para a festa. A irmã de Álvaro não veio. Nunca vinha a Belo Horizonte. Álvaro e Márcia tiveram dois filhos. Estranho mundo esse, onde as pessoas vão e vêm. Todos parecem bem.
      
Mariane
Mariane era jovem, pobre, pouca instrução, aparentemente sem família, e muito bonita. Tinha dezessete anos quando saiu de uma espécie de orfanato, e conseguiu um emprego de servente no hospital. Lá, virando noites, cuidando de doentes, ajudando parentes, preparando os mortos, conheceu Dr José, o médico mais antigo da casa, casado com Lygia e pai de quatro filhos. Cuidava dele como do pai que não conhecera. Ele cuidava dela como uma jovem mulher desejável. Do convívio cotidiano nascem estranhos sentimentos. Dr José encantou a jovem Mariane, e durante muitos anos dormiu com ela nos leitos de hospital. Nunca a levou ao cinema, nunca se viram fora dali. Houve um descuido e Mariane engravidou. Entrou em pânico, com medo de repetir sua própria história. Não tinha como criar. Queria o filho, mas tinha medo e não tinha apoio. Preferia morrer a procurar Sebastiana, sua mãe. Já Dr José queria o filho e prometeu que cuidaria, mas não com ela. A criança nasceu forte e Mariane nem viu o menino. No mesmo dia em que nasceu, Dr José levou o recém-nascido para casa. O filho é meu, a mãe morreu de parto, mentiu, aos prantos. Lygia criou o menino como seu. Mariane emagreceu, entrou em profunda depressão, e foi transferida para outro hospital em outra cidade. Deixou amigos na enfermaria onde teve o bebê, e acompanhou de longe a vida de Dr José durante todos os anos em que esteve viva.
Quando soube que um dos filhos de José e Maria havia sido assassinado, não pensou duas vezes, viajou doze horas de ônibus, e da rodoviária foi direto para o cemitério. Mariane foi ao enterro discretamente, e sentiu profundo alívio quando percebeu que o filho assassinado não era o seu. Entrou na fila das condolências. Encarou José firme nos olhos, apertou-lhe a mão. Sinto muito, disse. Ele quase teve um desmaio, e todos atribuíram o mal-estar à situação do enterro. Mariane, dando os pêsames, pôde abraçar forte seu filho, seus netos, sua nora. Em Lygia, deu um forte abraço, e disse murmurando: Obrigada. Lygia disse: De nada. E não entendeu. Mariane esperou a cerimônia acabar e se foi. Estranho mundo, esse em que as pessoas vão e vêm. Com o tempo, ficaram todos bem.  

Dona Mariza
       Dona Mariza e Seu Álvaro morreram juntos, com quase oitenta anos, num acidente de carro. Seus filhos Eduardo, Ilda, e os gêmeos Fernando e Fábio, já haviam saído de casa. Álvaro, o mais velho, foi quem cuidou de tudo.
Quando criança, Álvaro apaixonou-se por sua irmã Ilda no momento em que ela nasceu. Cuidava da menina, fazia-lhe as vontades, contava histórias para que ela dormisse, e dormia muitas vezes ao lado dela, excitado e feliz. Acariciava a irmã no banho, ajudava a menina a vestir-se. Antes que soubessem de onde vêm os bebês, já trocavam carícias como se fossem adultos. Quando Álvaro se deu conta, já era tarde, amavam-se como dois animais. Quando Ilda se deu conta, já era tarde, estava grávida. Tinha quatorze anos e contou tudo, aos prantos, para a mãe. Dona Mariza tomou a frente, levou a menina para Ituiutaba, onde tinha parentes que Ilda desconhecia, esperou o nascimento do bebê e sumiu com ele. Levou Ilda direto para Diamantina e organizou um casamento rápido com um primo de terceiro grau e de vinte e um anos, magro, de uma beleza extrema, delicado e obediente. Aceitou casar. Dona Mariza voltou para Belo Horizonte sem a filha e disse para todos: Ilda apaixonou-se e casou-se, jovens são assim. E ficou combinado: jovens são assim. Álvaro nunca mais viu sua irmã. Seu Álvaro e Dona Mariza visitavam Ilda com frequência. Ela aceitava as visitas, mas não retribuía. Depois da morte dos pais, Ilda desapareceu.

       Eduardo estava casado, morando em Belo Horizonte. Fábio se mudara com a esposa para o Rio de Janeiro. Fernando vivia com um companheiro. Dona Mariza e Seu Álvaro haviam relutado em aceitar a opção de Fernando. Com o tempo, não só aceitaram seu namorado, como fizeram o possível e o impossível para que eles adotassem uma criança encontrada num banheiro público com poucos meses de vida.
Coincidentemente, foi Dona Mariza quem encontrou o bebê, uma menina frágil, agasalhada e bem nutrida, na rodoviária, quando voltava de Diamantina, onde fora visitar a filha. A notícia nem saiu nos jornais.
Do banheiro foram para o cartório com uma penca de advogados. Primeiro registraram Sarita em nome deles, depois passaram o registro da menina para Fernando e seu namorado, quando permitiu a lei. Depois, como de praxe, levaram o bebê para o pediatra, que afirmou que Sarita nascera desenganada.

Estranha vida, onde os bebês vão e vêm.
No mais, todos estão muito bem.
           
            Josué
Quando tinha vinte e três anos, Josué trabalhava agachado no térreo do prédio onde era porteiro, quando um vergalhão de metal medindo dois metros de comprimento caiu do quinto andar e atravessou seu cérebro. Os bombeiros foram chamados, e precisaram serrar uma parte do material para que o Josué pudesse entrar no carro. Com meio metro de vergalhão atravessado na cabeça, entrando por trás e saindo entre os olhos, foi levado, lúcido, para o hospital, contando para os médicos o que acontecera. Após cinco horas de cirurgia, disse: Não doeu nada. Por três centímetros, teria ficado paraplégico, e por um centímetro ficaria cego.
       Sessenta anos depois, um carro desgovernado, de madrugada, atropelou e matou Josué. O motorista fugiu. O morto ficou na calçada até que o dia clareasse e alguém visse e chamasse a polícia. Não encontraram documentos que o identificasse. O corpo ficou no Instituto Médico Legal, e como ninguém procurou por ele, foi enterrado como indigente.

Ilda
Pouco depois da morte de Seu Álvaro e Dona Mariza, Ilda partiu em busca do filho, com duas malas enormes e uma pensão do marido, de volta para Ituitaba. Não disse nada a ninguém.
Seu marido pôde assumir o amante, tornando pública uma relação que começara na adolescência, e fora interrompida pelo casamento arranjado. Ilda morreu em Ituiutaba, com noventa e nove anos. Quase chegou ao cem.
Estranha vida, onde as pessoas vão e vêm.
Ilda nunca encontrou seu nenén.

Sarita
       Sarita, neta de Dona Mariza e Seu Álvaro, adotada por Fernando e seu namorado, nascera desenganada. Não vai sobreviver, sinto muito, disse um médico. Sarita, magrinha, desenganada, sobreviveu. Tinha as pernas finas e arqueadas, com dois anos ainda não andava. Não vai andar, sinto muito, disse o médico. Sarita, magrinha, cambaleante, andou. Estudou, casou, teve filhos e um tumor no cérebro. Não vai viver, disse outro médico. Sarita viveu. Fez muitas cirurgias, na perna e na cabeça. Teve dois filhos, cinco netos e uma neta gorducha, saudável, inteligente, sagaz e com uma formidável coordenação motora. Com menos de um ano já andava e subia em tudo: no escorrega, na cadeira, no fogão, na pia, abria a torneira, escalava os móveis, entrava embaixo da cama por um lado e saía pelo outro. Não podia ficar sozinha um minuto, que subia em alguma coisa. Falava algumas palavras corretamente, e sempre se fazia entender. Tinha cabelos cacheados e belos olhos azuis. Foi encontrada enforcada nas grades do berço aos dois anos.
Sarita chegou aos cem.
Estranha fila, essa que vai para o além.

Com o tempo, todos ficaram bem.

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