Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

01. Domingueira




Lu tinha onze anos e amava o Marcelo. Vestiu um vestido de seda azul, babado nas mangas, fez um rabo-de-cavalo enquanto os cabelos estavam molhados e de laço azul e talco parecia tão limpa como uma nuvem, tão discretamente perfumada como uma rosa de pele-pétala suave e lavada e lisa de quem tem onze anos e pela primeira vez – das muitas que há de trazer a vida – o coração descompassa por alguém.
Vai ter festa no terraço da Aninha e vai ter disco de dança e esse pensamento dá um calafrio no ventre-criança: o que eu mais desejo na vida é dançar com Marcelo.
Marcelo-magro chegou com oito amigos que se enfileiraram no parapeito, salão vazio, veio a mãe da Aninha e salvou. Trouxe cadeiras, chamou os meninos.Cheiro de sabonete Jhonson e corpo no ar.Com embaraço, alguns dançaram.
Lu com a mão no ombro e a outra dada a esse quatro-olho chato e Marcelo não pára de me olhar, será impressão?
A música acabou graças a Deus, outra mais rápida e a assanhada da Aninha rebola Coca-Cola, salgadinhos na bandeja, recebia beijos-no-rosto-parabéns, rebola, será que ele olha?
No espelho do banheiro Lu era ainda mais doce e pétala apaixonada. Tentou sorrir depois no terraço para Marcelo, as bochechas tremeram, ele não viu.
Faltavam duas horas para o pai de Lu vir buscá-la.Lu voltou a roer unhas. Marcelosentado, tão magro, tão lindo, tão quieto, tão diferente dos outros, de camisa vermelha e cabelo no rosto-pele-pétala-e-riso-de-homem. Essa música Lu não dançou, lenta, triste, sapato apertado e laço desfeito. Marcelo estava sozinho, encostado na janela, olhando a rua. Lu aproximou-se não muito perto e sorriu. Que calor. É, tá quente demais. (A mãozinha-menina-suor, boca seca, pelas pernas subia um choque, uma vontade de correr). Foi então... tocaram a campainha.
Luciana, seu pai chegou. Dois beijos no rosto de Marcelo depois teve que beijar todo mundo pra não pegar mal. Pai esperando. Pai de Lu impaciente-sonolento, de pijama por baixo do paletó, que calor.
Passou a semana inteira, aulas onde Lu sonhava.Rondar o prédio dele. Telefonar e desligar só pra ouvir o alô dele. Pacaio. Acróstico. Poemas. Marcelo. Cartomante. Carta-mente, romance. Onze anos em frente à televisão ansiavam feito uma mulher.
Quatro em matemática, sábado não tem festa. (Marcelo, Marcelo, Marcelo, de camisa vermelha.) Eu juro, mãezinha, por favor, paizinho. Não. Quatro. Por favor. De olhos de bebê cansados de chorar. Tá bem, desta vez pode ir.
Ir de cabelos soltos agora, saia curta verde, blusa verde e branca, cheiro de jasmim. Está linda, vai com Deus, minha filha. As amigas sem uniforme são engraçadas e Marcelo chegou quase no final da festa com quatro amigos. Meu cabelo já despencou, a saia verde amarrotada, suor do calor da última música e papai tocou a campainha, inferno de vida.
De novo a semana esticada, a obsessão, sonhar que ele se declara – amor – sonhar que ela se afoga e Marcelo na praia vem salva-la nos braços – os braços dele – os braços de Marcelo – podia vê-los se fechasse os olhos...
Luciana de Moraes Alcântara, será que a senhorita seria capaz de repetir o que eu estava dizendo? Não, lógico que não, professora chata, gorda, feia, barriguda, solteirona, prepotente, que não se apaixona, batom saindo pela boca afora.
-         Não, senhora.
   Mas este sábado dançou três vezes com ele. Era difícil respirar, era difícil conter a frieza das mãos-meninas-nervosas, era difícil acertar o passo, era difícil falar sem gagueira, era difícil se conter para não falar demais, era difícil tê-lo tão perto de si e querê-lo e desejá-lo e amá-lo, era difícil ouvir a voz dele rente ao ouvido cantarolando. Prazer, sofrimento, insegurança e angústia, a música acabou. Depois ele não dançou mais.
   No outro dia Luciana comprou três discos que ouviu mil vezes durante os três meses de férias em Petrópolis. Foram oitenta e sete dias sem vê-lo, contara.
       Março, áries, Luciana fez doze anos de franja lisa e sutiã e Marcelo foi o único garoto que trouxe presente: uma rosa amarela que ficou guardada durante muitos anos dentro de um livro.
Doze anos é Marcelo dançando com ela de rosto colado, a festa inteira a ponto do pai vigiar de tão constante que Marcelo foi seu par. Na hora de ir embora apertou a mão dela com força. Os convidados saíram e o apartamento desarrumado de fim de aniversário ficou escuro e silêncio de zumbido no ouvido de Luciana que, de franja, deitada, lembrava.
       Seu coração pequenino-botão-flor-pétala queria ter um retrato dele só para olhar. Seus olhinhos-bebê grandes, a boca-menina-moça, o nariz prometendo futuras irreverências, de pijama de flanela descalça Lu chorou no inverno porque viram Marcelo de mãos dadas com outra garota no cinema.
       Tantas lágrimas, meu grande amor, nunca mais. Agora só resta esquecer. Marcelo não me ama. Porém Marcelo-mais-gordo antes de se mudar com os pais pra Brasília do telefone público disse adeus, e prometeu voltar nas férias, e disse que ia ficar com saudades, e perguntou se ela ia ficar com saudades, e pegou o endereço dela pra escrever muitas cartas, e quis desligar três vezes e por três vezes retomou o assunto, depois desligou com um grande beijo: um beijo grande pra você, Lu.
       Não. Marcelo não escreveu.
       Nem veio nas férias de fim de ano. Só apareceu no outro frio, o de julho dos treze anos, mas já sem importância.Luciana esqueceu e acabou o ginásio de cabelo curtinho e cintura, de unhas feitas e sapato de saltinho.
       De Marcelo ficou uma lembrança nem tão perdurável no tempo e uma flor murcha amarela dentro de um livro de inglês da quarta série, de Marcelo ficaram três músicas que o traziam de volta e que o traziam tão menino à memória dela-depois-moça.
       De Marcelo ficou um sentimento de silêncio e dúvida. Olhares mudos e interrogações. Palavras com duplo ou sem sentido. Vontade de se infiltrar feito um bicho-de-pé no coração de uma pessoa e descobrir-lhe o pensamento. Tudo que haveria de se repetir na vida de Luciana-menina-moça-mulher: silêncio e dúvida, e mais tarde um vazio.

       Na mulher de nariz irreverente e seios grandes haveria de perdurar esse coraçãozinho de pincel, a poesia multicor, a realidade opaca e insípida das pessoas-pensamentos-silêncios-dúvidas, a realidade como páginas de um Caderno de Colorir.

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