Lu tinha onze anos e amava
o Marcelo. Vestiu um vestido de seda azul, babado nas mangas, fez um
rabo-de-cavalo enquanto os cabelos estavam molhados e de laço azul e talco
parecia tão limpa como uma nuvem, tão discretamente perfumada como uma rosa de
pele-pétala suave e lavada e lisa de quem tem onze anos e pela primeira vez –
das muitas que há de trazer a vida – o coração descompassa por alguém.
Vai ter festa no terraço da
Aninha e vai ter disco de dança e esse pensamento dá um calafrio no
ventre-criança: o que eu mais desejo na vida é dançar com Marcelo.
Marcelo-magro chegou com oito amigos que se enfileiraram no
parapeito, salão vazio, veio a mãe da Aninha e salvou. Trouxe cadeiras, chamou
os meninos.Cheiro de sabonete Jhonson e corpo no ar.Com embaraço, alguns
dançaram.
Lu com a mão no ombro e a
outra dada a esse quatro-olho chato e Marcelo não pára de me olhar, será
impressão?
A música acabou graças a
Deus, outra mais rápida e a assanhada da Aninha rebola Coca-Cola, salgadinhos
na bandeja, recebia beijos-no-rosto-parabéns, rebola, será que ele olha?
No espelho do banheiro Lu
era ainda mais doce e pétala apaixonada. Tentou sorrir depois no terraço para
Marcelo, as bochechas tremeram, ele não viu.
Faltavam duas horas para o
pai de Lu vir buscá-la.Lu voltou a roer unhas. Marcelosentado, tão magro, tão
lindo, tão quieto, tão diferente dos outros, de camisa vermelha e cabelo no
rosto-pele-pétala-e-riso-de-homem. Essa música Lu não dançou, lenta, triste,
sapato apertado e laço desfeito. Marcelo estava sozinho, encostado na janela,
olhando a rua. Lu aproximou-se não muito perto e sorriu. Que calor. É, tá
quente demais. (A mãozinha-menina-suor, boca seca, pelas pernas subia um
choque, uma vontade de correr). Foi então... tocaram a campainha.
Luciana, seu pai chegou.
Dois beijos no rosto de Marcelo depois teve que beijar todo mundo pra não pegar
mal. Pai esperando. Pai de Lu impaciente-sonolento, de pijama por baixo do
paletó, que calor.
Passou a semana inteira,
aulas onde Lu sonhava.Rondar o prédio dele. Telefonar e desligar só pra ouvir o
alô dele. Pacaio. Acróstico. Poemas. Marcelo. Cartomante. Carta-mente, romance.
Onze anos em frente à televisão ansiavam feito uma mulher.
Quatro em matemática,
sábado não tem festa. (Marcelo, Marcelo, Marcelo, de camisa vermelha.) Eu juro,
mãezinha, por favor, paizinho. Não. Quatro. Por favor. De olhos de bebê
cansados de chorar. Tá bem, desta vez pode ir.
Ir de cabelos soltos agora,
saia curta verde, blusa verde e branca, cheiro de jasmim. Está linda, vai com
Deus, minha filha. As amigas sem uniforme são engraçadas e Marcelo chegou quase
no final da festa com quatro amigos. Meu cabelo já despencou, a saia verde
amarrotada, suor do calor da última música e papai tocou a campainha, inferno
de vida.
De novo a semana esticada,
a obsessão, sonhar que ele se declara – amor – sonhar que ela se afoga e
Marcelo na praia vem salva-la nos braços – os braços dele – os braços de
Marcelo – podia vê-los se fechasse os olhos...
Luciana de Moraes
Alcântara, será que a senhorita seria capaz de repetir o que eu estava dizendo?
Não, lógico que não, professora chata, gorda, feia, barriguda, solteirona,
prepotente, que não se apaixona, batom saindo pela boca afora.
-
Não, senhora.
Mas este sábado dançou três vezes com ele. Era difícil respirar,
era difícil conter a frieza das mãos-meninas-nervosas, era difícil acertar o
passo, era difícil falar sem gagueira, era difícil se conter para não falar
demais, era difícil tê-lo tão perto de si e querê-lo e desejá-lo e amá-lo, era
difícil ouvir a voz dele rente ao ouvido cantarolando. Prazer, sofrimento,
insegurança e angústia, a música acabou. Depois ele não dançou mais.
No outro dia Luciana comprou três discos que ouviu mil vezes
durante os três meses de férias em Petrópolis. Foram oitenta e sete dias sem
vê-lo, contara.
Março, áries, Luciana
fez doze anos de franja lisa e sutiã e Marcelo foi o único garoto que trouxe
presente: uma rosa amarela que ficou guardada durante muitos anos dentro de um
livro.
Doze anos é Marcelo
dançando com ela de rosto colado, a festa inteira a ponto do pai vigiar de tão
constante que Marcelo foi seu par. Na hora de ir embora apertou a mão dela com
força. Os convidados saíram e o apartamento desarrumado de fim de aniversário
ficou escuro e silêncio de zumbido no ouvido de Luciana que, de franja,
deitada, lembrava.
Seu coração
pequenino-botão-flor-pétala queria ter um retrato dele só para olhar. Seus
olhinhos-bebê grandes, a boca-menina-moça, o nariz prometendo futuras
irreverências, de pijama de flanela descalça Lu chorou no inverno porque viram
Marcelo de mãos dadas com outra garota no cinema.
Tantas lágrimas, meu
grande amor, nunca mais. Agora só resta esquecer. Marcelo não me ama. Porém
Marcelo-mais-gordo antes de se mudar com os pais pra Brasília do telefone
público disse adeus, e prometeu voltar nas férias, e disse que ia ficar com
saudades, e perguntou se ela ia ficar com saudades, e pegou o endereço dela pra
escrever muitas cartas, e quis desligar três vezes e por três vezes retomou o
assunto, depois desligou com um grande beijo: um beijo grande pra você, Lu.
Não. Marcelo não
escreveu.
Nem veio nas férias de
fim de ano. Só apareceu no outro frio, o de julho dos treze anos, mas já sem
importância.Luciana esqueceu e acabou o ginásio de cabelo curtinho e cintura,
de unhas feitas e sapato de saltinho.
De Marcelo ficou uma
lembrança nem tão perdurável no tempo e uma flor murcha amarela dentro de um
livro de inglês da quarta série, de Marcelo ficaram três músicas que o traziam
de volta e que o traziam tão menino à memória dela-depois-moça.
De Marcelo ficou um
sentimento de silêncio e dúvida. Olhares mudos e interrogações. Palavras com
duplo ou sem sentido. Vontade de se infiltrar feito um bicho-de-pé no coração
de uma pessoa e descobrir-lhe o pensamento. Tudo que haveria de se repetir na
vida de Luciana-menina-moça-mulher: silêncio e dúvida, e mais tarde um vazio.
Na mulher de nariz
irreverente e seios grandes haveria de perdurar esse coraçãozinho de pincel, a
poesia multicor, a realidade opaca e insípida das
pessoas-pensamentos-silêncios-dúvidas, a realidade como páginas de um Caderno
de Colorir.
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