O menino não conhecia
o pai. A família evitava o assunto. O padrasto fazia as vezes. O padrasto lhe
deu uma coleção completa de tias. O menino chamava o padrasto de pai. E assim
ficou.
O pai ausente tinha
fama controvertida. Canalha para alguns. Brilhantemente boêmio para outros. A
família do padrasto ela alegre e ria à toa. Três tias, doze cervejas e um
violão bastavam para virar uma festa. As duas solteiras adoravam cantar em duas
vozes e a casada recitava poemas longos que contavam histórias rimadas, todas
tinham uma memória de elefante quando se tratava de letras de música e poesias.
Falavam de tudo e de todos, verdadeiras atrizes desperdiçadas. Gesticulavam,
remedavam os outros, qualquer assunto servia desde que alguém risse e para que
nunca houvesse silêncio.
Às vezes falavam alto,
às vezes baixinho, às vezes por metáforas, dependendo de onde estivessem as
crianças e de qual fosse o assunto. Adoravam falar da vida alheia e também de
sexo.
Um dia o menino ouviu
a tia mais velha dizer com desdém: Esse, não vai ter onde cair morto.
E teve certeza que esse era seu pai.
Naquela época não
existiam tantos pais ausentes como hoje em dia, estávamos no ano de mil
novecentos e cinquenta e oito.
O verdadeiro pai
existiria em alguma cidade pequena da Região dos Lagos e lá teria um barco. O
trabalho do pai consistiria em passear com turistas excêntricos, conhecer
lindas mulheres, constituir e abandonar várias famílias. Cochichava-se que o
menino teria alguns irmãos estrangeiros.
O pai seria ruivo,
alto e forte, simpático e bronzeadíssimo, e teria dificuldades com o correio. O
menino era ruivo e muito alto para sua idade (dez anos) e por causa disso o pai
teria que ser muito ruivo e muito alto, tivesse a idade que tivesse.
O pai pensaria nele,
menino, adoraria revê-lo mas a família inteira não deixava. E havia um retrato:
pai e menino em mil novecentos e cinqüenta, de calção preto grande nas pedras
do arpoador vazias. Uma só vez, ali estiveram, o menino e seu pai. O menino não
tinha lembrança, mas tinha a foto.
Ou o pai seria um
marinheiro inteligente e alegre, que juntava todos os tostões para, um dia,
comprar uma longa passagem e vir à cidade do Rio de Janeiro matar seu maior
desejo: rever seu filho.
No ano de mil
novecentos e sessenta e três, Carlos Henrique desistiu dessa história (o nome
do menino era Carlos Henrique e tinha então quinze anos). O pai tinha morrido
para sempre. Só um pai que morre para sempre abandona assim um menino.
Carlos Henrique rezou
pela alma daquele pai perdido talvez num naufrágio durante uma ventania. Pena
um pescador morrer assim tão jovem e deixar um filho no mundo sem pai para
imitar e para pescar de novo no Arpoador, então com muitos anzóis pontilhando
as pedras seguras.
Naquele tempo os
rapazes iam à missa quando a família era católica e frequentava a igreja. Que
Deus encaminhe para o mais lindo ponto de Luz do Universo o Espírito do Pai e
que Deus Todo Poderoso perdoe as injustiças e as maledicências da família que
teimava em cochichar mal da boemia do pai. Nosso que estais no Céu.Perdoai as
nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Livrai-nos do
mal amém.
Em mil novecentos e setenta,
com vinte e dois anos, Carlos Henrique casou-se, teve sua própria filha ruiva e
se esqueceu daquele pai. Seu padrasto virou o avô da menina que ignorava que
não havia laços de sangue nesse parentesco.
Mesmo sem seu pai,
tudo deu certo na família de Carlos Henrique. Era uma família sem muitos
recursos financeiros, porém bastante unida e engraçada, que se reunia para
falar sem parar, tocar violão e cantar, recitar longas poesias e contar casos
gozados, e tudo ao mesmo tempo.
Em fevereiro de mil
novecentos e oitenta a filha de Carlos Henrique, que era muito alta para sua
idade e se chamava Adriana, viajou com a família de uma amiguinha para Búzios.
Adriana voltou bronzeada e feliz, com camisetas de presente para todos e muitas
fotografias.
Numa das fotos, a câmara
enfocava Adriana sorrindo em primeiro plano acocorada no alto das pedras da
Praia da Ferradurinha tendo ao seu lado uma gaiola com um pato dentro. Atrás de
ambos, via-se um último plano a Praia dos Amores distante e ensolarada, e em
segundo plano um par de pernas de homem cortadas do corpo pelo enquadramento.
- Esse pato – disse a
menina – também se chama Carlos Henrique.
Apontou para as pernas
fora de foco e concluiu:
- É o nome do filho
desse moço. Ele disse que nunca mais viu o filho.
Carlos Henrique pôde
ver as pernas ruivas e bronzeadas e os pés descalços e cheios de areia do seu
pai. Meses depois, mais por brincadeira do que por sentimentalismo, roubou a
foto do pato chará e guardou em seu próprio álbum de infância, ao lado da foto
em que estava no Arpoador, de mãos dadas com seu pai de corpo inteiro. Não
havia dúvidas. Eram as mesmas pernas envelhecidas.
Em mil novecentos e
oitenta e dois, às gargalhadas, depois de uma série de cervejas com a família
em seu apartamento pequeno, pôde contar a história toda. As tias foram as que
mais se divertiram. Até o padrasto caiu na risada. Carlos Henrique subiu numa
cadeira, abriu a parte de cima do armário, onde geralmente guardamos o que não
serve para nada, mas que pode um dia servir para alguma coisa, fisgou as duas
fotografias e contou até para a própria Adriana a divertida coincidência. Todos
riram a valer.
A menina, brincalhona
como as tias, depois de xerocar e ampliar as duas fotos, recortou e montou uma
miscelânea: pegou uma terceira foto do Arpoador no verão apinhada de gente e
colou a foto do pai com cara de pato e a foto do pato na gaiola com a cara do
pai. Uma obra de arte surrealista. Todos juntos deram gostosas risadas.
De vez em quando,
Carlos Henrique, ou Adriana, ou alguma tia contava a tal história do pato e das
pernas, mostrava a foto-montagem e acrescia detalhes inventados, só pra ficar
mais gozado. E mais gozado ia ficando à medida que Carlos Henrique envelhecia e
suas pernas iam ficando parecidas com as do pai da fotografia.
Uma das tias – ninguém
lembra qual – observou que o pato era grande demais para a gaiola, o que
significava que por descuido, desatenção, negligência ou perversão, o pato
havia crescido demais lá dentro e estava preso, engaiolado para sempre. Para
retirá-lo dali, com certeza tiveram que destruir a pequena gaiola.
Quando Adriana, que
era muito alta, casou e saiu da residência dos pais, um apartamento mínimo,
para sua própria, outro apartamento mínimo, todos rolaram de rir lembrando a
história do pato grande preso na gaiola pequena.
De tão contado, o caso
virou motivo de chacota.
Adriana brincava:
-
Depois da terceira dose... lá vem... aposto que alguém vai contar
a história do meu tio pato.
A história do tio pato
era engraçada, mas como havia muitas histórias engraçadas na família, acabaram
esquecendo essa. Em junho de mil novecentos e noventa e oito aconteceu o pior:
ninguém achou a mínima graça quando, num domingo em que todos se reuniam no
apartamento pequeno, o filho ruivo de Adriana, um alto e simpático guri de
cinco anos, ouviu a campainha, correu para abrir a porta e voltou saltitando
como saltitam as crianças felizes, dizendo:
-
Mãe, tem um velhinho ruço, altão, de mala, lá na porta, dizendo
que é teu avô.
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