Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

08. Desejo



Vilmar era um rapaz perigosamente normal e correto e assim seu trabalho e assim sua família e assim sua vida inteira, tudo estava tão nos seus devidos lugares e a vida era tanto uma repetição de coisas seguras e que deram certo que Vilmar estava no momento exato para que acontecesse alguma coisa que o despertasse e essa coisa foi uma mulher chamada Nádia, que tinha no rosto a expressão que têm nossas avós quando moças, aqueles olhos crentes de posar em fotografia de família, mas de noite foi mulher de gritar e arranhar como Vilmar Homem Feito jamais tinha visto. Nádia De Noite foi embora e não telefonou mais e Vilmar soube que ela tinha um caso com um fotógrafo.
Depois Vilmar reviu Nádia no teatro e os amantes de uma só noite se cumprimentaram, ela de braços dados com um rapaz (o fotógrafo?), e depois ela se despediu: De repente a gente se esbarra por aí.
Mas Vilmar não esbarrava em ninguém, seguia tentando não pensar em Nádia. O que sentiu, o que aconteceu, tentou apagar como se usasse uma borracha, no seu coração não houve mais a saudade ou a lembrança de uma mulher, apenas uma rasura, a cabeça não pensava e facilitava a árdua tarefa de esquecer.
Quando se encontraram pela segunda vez por acaso, Nádia estava sozinha e foi ela quem sentou-se a seu lado e Vilmar não perguntou se ela queria ir com ele, simplesmente puxou-a pelo braço e disse você vem comigo.
No elevador, no prédio dele, ela apertou o botão, boa memória. Vilmar não perguntou se ela queria e nem com gestos perguntou, como se fosse um marido mudo e lento despiu-a (ela queria) e quando cansou-se, Vilmar adormeceu. Não tornaria a vê-la por muito tempo porque enquanto Vilmar perdia por ela aquele ar de normalidade que o fazia tão distinto, no civil de qualquer maneira sem festa nem doce, Nádia casou-se.

Foi tudo muito rápido.
De repente, como da primeira vez, Nádia surgiu na minha frente e me sorriu num oi tão eufórico e tão súbito que mal consegui vê-la, já se afastava displicente e eu tive plena consciência de que seria capaz de amá-la até as últimas consequências.
Tentei pelo menos sorrir mas nem meus lábios, não me obedeceram até o último instante quando eu me levantava, o corpo disposto a sair (a alma, não). Então ela resoluta e decidida aproximou-se e conduziu-me os passos sonâmbulos e quando dei por mim estávamos na portaria do meu edifício como se eu a levasse, mas na verdade quem me guiava era ela, eu apenas dizia o que Nádia queria ouvir, afastado de mim eu emitia opiniões que nunca haviam sido minhas, como se um simples olhar dela governasse meu corpo que há muitos tempo já não me obedecia. Subimos. Ela foi mais natural que da primeira vez, e eu mais aflito. Depois verifiquei que um fantasma havia falado por mim durante todo o tempo, de minha boca realmente não saiu uma só frase, uma só pergunta das muitas que eu queria fazer a ela, tive a impressão de que todas as horas que passamos juntos haviam sido de infinito silêncio.
Nas noites seguintes, o telefone foi uma arma do tempo, à noite eu chamaria? Meus dedos obedientes, Nádia está? O telefone foi um desafio, uma esperança, meu coração queria tanto mas meus dedos independentes não concordaram e negaram-se a discar pra ela.
Até que um tempo depois ela discou na noite de sexta e foram dois dias e duas noites de infinito silêncio, Nádia Mágica comandando todos o smeus gestos e não deixando minha boca falar de amor, descontraída e desinibida como se tudo fosse muito natural por dois dias me sugou então no terceiro dia ela foi embora e eu caí de bruços no sofá da sala, extenuado, cansado, e só então me dei conta de mim mesmo, um perfeito idiota.
Passou muito tempo. Depois que esse muito tempo passou, o interfone tocou e era ela, pedindo pra subir. Subiu, pediu uma bebida (já havia bebido), sentou-se naquele desembaraço irritante e saudável que me emudecia, e um outro dentro de mim falava todas as futilidades que ela esperava ouvir e então Nádia respondia ágil como se houvesse um roteiro a seguir e como se estivéssemos ensaiados, o assunto era bobo, um tema vazio.
Depois, de repente como era o seu jeito, Nádia olhou-me com seus olhos de cobra (Nádia não se movia) e fui sentar-me a seu lado sem raciocinar, e alguém de dentro de mim despiu Nádia (era ela mesma quem se despia), e fizemos amor, Nádia me arranhando como se me odiasse, eu-mudo quis ter dito que seria capaz de amá-la até as últimas consequências, mas seus olhos silenciosos de cobra me disseram que não era preciso dizer, que ela estava ali porque sabia, e me arranhava porque sabia. Depois consultava o relógio, vestia-se e devolvia-me a mim mesmo, um idiota perfeito.
Era assim: quando queria tocava o interfone e, se eu estivesse em casa, subia, conversávamos porque os assuntos inúteis não se esgotam, até que seus olhos se detinham em mim, sucuri-jararaca-jiboia, lá ia eu fazer-lhe amor sem perguntar e deixava que ela me mordesse e me arranhasse ou que bebesse além da conta, zeloso, eu cuidava dela.
Minha vida agora é a aflição do ciúme e do medo de perdê-la, e eu me costumei a ser automático e hipnotizado e sonâmbulo e passei a viver em função desses momentos de solidão silenciosa que transcorrem com Nádia. Fiquei viciado em Nádia e não sei mais viver de outro modo, ela me aniquila, mas me faz viver de outro modo, de maneira mais intensa. O casamento dela não é o que me dilaera, esgota, tortura, é sua ausência, seu interior obscuro como um quarto sem luz. Se Nádia continuasse solteira continuaria chegando e saindo em repentes e falando futilidades que em vão busco um duplo sentido, torço suas palavras, na esperança de encontrar seus sentimentos, mas Nádia não os tem, ou os tem tão escondidos de mim que ela mesma os desconhece. Se Nádia não fosse casada, continuaria a ser despida e penetrada por mim sem ser minha.
Meu coração doente inventou uma deusa no lugar de uma mulher que deve fazer feira de mau humor e passeios de braços dados com o marido, o corno.

Tarde da noite ela tocou o interfone, era uma terça-feira, parecia triste. Aceitou bebida e entrou direto no assunto: o marido estava sendo transferido para Brasília e ela ia com ele. Nádia chorou e Vilmar deixou que ela chorasse sem perguntas. Ela estava distante.
Tarde demais pra entender essa mulher que entrou e saiu em súbitos tantas vezes sem dizer quem era. Viu-a sabendo que jamais iria revê-la e então choraram juntos, cada um no seu canto. Viciado em Nádia, teria que aprender a viver sem ela. Nádia Súbita deu um bote e então eles fizeram amor no chão da sala pela última vez, e depois ficaram estirados, nuns, perplexos na encruzilhada.
Nádia Lenta levantou-se (o olhar distante, onde a levava?), e como se fosse um dever e não um hábito, dirigiu-se ao banheiro e eu ouvi o barulho da água. Voltou, recolheu as peças de roupa e vestiu-se tão devagar como se não soubesse vestir-se, olhou o relógio e calçou os sapatos (eu continuava nu, ofegante, desesperado). Nádia procurou na bolsa uma escova de cabelos, demorou a achar e penteou-se, procurou um batom, e seus lábios ficaram vermelhos como quando ela chegara. Lentamente ainda se perfumou atrás da orelha e eu a vi caminhar mansa até o espelho perto da porta, e esfregar os lábios um no outro, e ajeitar os cabelos da imagem refletida.

Então ela passou por mim deitado, pegou o maço de cigarros, enfiou na bolsa e cruzou a sala tão devagar nos seus passos de gato, abriu a porta e fechou-a atrás de si sem voltar-se nem dizer-me e esses seus últimos movimentos são a única coisa que me lembro com perfeita clareza porque aconteceram devagar. O resto do tempo em que Nádia esteve em minha vida transcorreu muito rápido e não tive tempo de amá-la, nem de conhecê-la, nem de aprender a viver sem ela.

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