É bom jantarmos juntos à mesa, eu e ela, eu sem tremer, é bom
vê-la loura sem brilhar, ainda magra porém sem levitar, e não tem na voz a
música nem no rosto a expressão adivinha e minha de antes. Ainda bonita e
frágil. Talvez nem tão bonita agora que eu consigo olhá-la sem piscar, sem
descer os olhos, sem amor.
Então eu bocejei na presença de Katarina Lúcia Lemos. Pela
primeira vez, um bocejo eterno e molhado. Agora, sem ela no peito, posso ver a
mim mesmo como sou: um homem adulto pensante inocente e responsável pelos meus
atos.
Sorri de pensar que já matei por ela, um, dois, três, quantos
homens? Sorri de lembrar que já cumpri pena, e fiz filhos com ela e tiramos
todos e que também chorei aquela lágrima imensa, a maior de todas, a que
enregelou grudada no meu rosto, e que me fez olheiras, e me cresceu a barba, e
me revirou o estômago, sorri.
Ei-la sentada, uma mulher tão comum. Tantos anos na prisão
Katarina Lúcia, por ti, por quê? Hoje nem mais uma ânsia, estou rio, distante,
sem assunto.
Vejo arranhões nas suas costas nuas, no vestido que ela faz
questão de decotar, arranhões enfileirados em quatro(, Katarina) dos seus
amantes violentos, fortes e rápidos, e silenciosos, aqueles que adormecem logo
e ela esquece o rosto, arranhões úmidos de tão recentes (, Katarina como
sempre,) que ela faz de propósito mas que eu na não consigo me importar.
Katarina sempre assim, sempre a mesma, esbarrando a coxa na
coxa dos meus amigos mais sinceros, dos meus amigos mais antigos, para virá-los
pelo avesso, sempre uma palavra mágica, sempre um encontro noturno, fortuito, e
um short exibindo um sorriso novo a cada semana, Katarina Lúcia Lemos.
Ainda a mesma? Fraca, magra e opaca, um pouco mais amarga de
abortar a prole e carregar tantas mortes nas costas, tantos filhos encubados no
ventre, e um pedaço da minha vida na penitenciária: a cruz mais pesado nos seus
ombros sardentos e frágeis.
É bom receber esse seu antigo olhar penetrante sem enrijecer e
vê-la opaca e oferecida acender um cigarro enquanto eu olho o relógio e marco o
tempo exato de deixá-la, loura e sozinha, levando-lhe o viço, minha ausência definitiva
da vida de Katarina Lúcia Lemos.
Katarina então respira feito gente grande, feito gente tensa e
vazia. Vai ficar de nós esse suor, tão derramado, tão tardio, essa falta de
assunto. Vão ficar de nós essas cruzes beirando a estrada, onde foram enterrados
nossos mortos e essa barriga enorme, barriga de gestações eternas, porque você
nunca teve coragem de parir, Katarina, nunca um esperma mais demorado acolhido
no leito, sempre escorreram apressados e solitários pelas beiradas da cama,
esse útero gelado de Katarina Lúcia.
Ei-la chorando, uma mulher tão comum.
É tempo de apagar o cigarro e olhar o relógio que marca a hora
exata de deixá-la, comum e abatida, oura e coitada. Meus talheres cruzados, a
comida fria, minha sentença cumprida, meu olhar reto que encontra as pálpebras
gordas e úmidas de Katarina Lúcia Lemos.
Katarina vai vestir vestido justo e falar bonito, vai rondar
meu prédio, seguir meus passos, pisar em falso, discar meu telefone e ouvir-me
a voz em silêncio, fora as enormes cartas que o correio há de trazer. Katarina
vai atirar a esmo, sentir meu cheiro e gritar meu nome, vai rabiscar paredes,
espernear na rua, chorar à noite.
Katarina Lúcia Lemos
vai atear fogo às vestes, há de fazê-lo em praça pública, sempre magra, sempre
frágil, sempre aquela tocha acesa iluminando o Impossível, que desta vez e para
sempre serei eu, olhando-a sem tremer nem piscar, sem descer os olhos, sem
amor.
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