Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

09. Katarina Lúcia Lemos



       É bom jantarmos juntos à mesa, eu e ela, eu sem tremer, é bom vê-la loura sem brilhar, ainda magra porém sem levitar, e não tem na voz a música nem no rosto a expressão adivinha e minha de antes. Ainda bonita e frágil. Talvez nem tão bonita agora que eu consigo olhá-la sem piscar, sem descer os olhos, sem amor.
       Então eu bocejei na presença de Katarina Lúcia Lemos. Pela primeira vez, um bocejo eterno e molhado. Agora, sem ela no peito, posso ver a mim mesmo como sou: um homem adulto pensante inocente e responsável pelos meus atos.
       Sorri de pensar que já matei por ela, um, dois, três, quantos homens? Sorri de lembrar que já cumpri pena, e fiz filhos com ela e tiramos todos e que também chorei aquela lágrima imensa, a maior de todas, a que enregelou grudada no meu rosto, e que me fez olheiras, e me cresceu a barba, e me revirou o estômago, sorri.
       Ei-la sentada, uma mulher tão comum. Tantos anos na prisão Katarina Lúcia, por ti, por quê? Hoje nem mais uma ânsia, estou rio, distante, sem assunto.
       Vejo arranhões nas suas costas nuas, no vestido que ela faz questão de decotar, arranhões enfileirados em quatro(, Katarina) dos seus amantes violentos, fortes e rápidos, e silenciosos, aqueles que adormecem logo e ela esquece o rosto, arranhões úmidos de tão recentes (, Katarina como sempre,) que ela faz de propósito mas que eu na não consigo me importar.
       Katarina sempre assim, sempre a mesma, esbarrando a coxa na coxa dos meus amigos mais sinceros, dos meus amigos mais antigos, para virá-los pelo avesso, sempre uma palavra mágica, sempre um encontro noturno, fortuito, e um short exibindo um sorriso novo a cada semana, Katarina Lúcia Lemos.
       Ainda a mesma? Fraca, magra e opaca, um pouco mais amarga de abortar a prole e carregar tantas mortes nas costas, tantos filhos encubados no ventre, e um pedaço da minha vida na penitenciária: a cruz mais pesado nos seus ombros sardentos e frágeis.
       É bom receber esse seu antigo olhar penetrante sem enrijecer e vê-la opaca e oferecida acender um cigarro enquanto eu olho o relógio e marco o tempo exato de deixá-la, loura e sozinha, levando-lhe o viço, minha ausência definitiva da vida de Katarina Lúcia Lemos.
       Katarina então respira feito gente grande, feito gente tensa e vazia. Vai ficar de nós esse suor, tão derramado, tão tardio, essa falta de assunto. Vão ficar de nós essas cruzes beirando a estrada, onde foram enterrados nossos mortos e essa barriga enorme, barriga de gestações eternas, porque você nunca teve coragem de parir, Katarina, nunca um esperma mais demorado acolhido no leito, sempre escorreram apressados e solitários pelas beiradas da cama, esse útero gelado de Katarina Lúcia.
       Ei-la chorando, uma mulher tão comum.
       É tempo de apagar o cigarro e olhar o relógio que marca a hora exata de deixá-la, comum e abatida, oura e coitada. Meus talheres cruzados, a comida fria, minha sentença cumprida, meu olhar reto que encontra as pálpebras gordas e úmidas de Katarina Lúcia Lemos.
       Katarina vai vestir vestido justo e falar bonito, vai rondar meu prédio, seguir meus passos, pisar em falso, discar meu telefone e ouvir-me a voz em silêncio, fora as enormes cartas que o correio há de trazer. Katarina vai atirar a esmo, sentir meu cheiro e gritar meu nome, vai rabiscar paredes, espernear na rua, chorar à noite.

        Katarina Lúcia Lemos vai atear fogo às vestes, há de fazê-lo em praça pública, sempre magra, sempre frágil, sempre aquela tocha acesa iluminando o Impossível, que desta vez e para sempre serei eu, olhando-a sem tremer nem piscar, sem descer os olhos, sem amor.

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