A
filha tira do armário os casacos de frio, coloca na mala grande com cuidado.
Depois é a vez dos vestidos, saias, biquínis, calças, blusas, e pronto, a mala
está cheia. A segunda mala, menor, também é feita em minutos.
Pega
na cozinha um saco com caixas de papelão, e enche com livros. Alguns ficam de
fora, não serão relidos. Faz uma inspeção no apartamento, olhando
minuciosamente cada canto, cada gaveta, retirando o que considera seu,
examinando todos os objetos e recolocando-os de volta. Verifica todos os cômodos: sala, quarto,
escritório, banheiros, cozinha, área de serviço. Ela segue enfileirando as
malas, as caixas, uma mochila, dois pacotes, murmura: Minhas coisas... e ri,
docemente, pra dentro. Então ouve o barulho da chave na porta. O pai entra com
um olhar sobressaltado, olha a fila de caixas de mudança, vira-se para ela e
tenta dizer alguma coisa, mas não lhe ocorre nada. Ele olha em volta, com o
olhar perdido, vai até o quarto da filha e vê os armários dela vazios.
-
Pai, eu tô feliz.
- Para onde você vai? – pergunta ele, com fingida ironia. Para a
casa da mamãe? Ela olha para ele com
tristeza. A mãe dela está morta.
- Para onde você vai? – insiste ele, dessa vez sem ironia.
- Viver com meu namorado na casa dele.
- Você está precipitando – afirma o pai, tolerante como se falasse
a uma criança.
- Pensei durante dois anos – diz, e enfileira as malas junto à
porta.
Ele senta-se na poltrona nova e finge que lê o jornal,
acompanhando todos os movimentos dela com o rabo do olho. Ela vai para a
cozinha e lava toda a louça do almoço como se não fosse embora, prepara o
jantar como se jantasse com ele esta noite, rega as plantas como se fosse morar
lá para o resto da vida.
Ela tira as roupas do varal, as que estavam secas, e passa a ferro
todas. Separa as roupas de mulher, e faz mais um embrulho que coloca junto às
malas.
Ela está penteando os cabelos fartos e longos em frente ao espelho
do banheiro, de porta aberta. Ele diz, enquanto ela se penteia:
- Vai anoitecer..
- Que anoiteça – a filha murmura tão baixinho que niguém ouviu.
Ela
sorri amarelo para que ele sorria. Ele obedece o silencioso comando e retribui
o sorriso. Depois que ele sorri, ela fica aliviada, e dirige-se para a porta do
apartamento. Ele segue atrás, para em frente à janela e olha para fora. Nuvens
escuras avançam sobre a cidade.
-
Bem – já vou. E fica parada no meio da sala.
Ele olha para ela e ficam frente a frente, de pé um em frente ao outro, sérios,
solenes como dois soldados.
-
Me ajuda com as malas – ela pede e eles saem
carregados.
Como
ele não consegue dizer nada, ela continua:
-
Pai, ele está me esperando. Se der certo, a gente casa no civil e na igreja.
O
pai tenta dizer que acha bom, mas engasga, a voz sai falhada, ele pigarreia e
tenta de novo:
-
Que bom.
Eles
descem pelo elevador, trocando olhares carinhosos. O pai repete o que já havia dito mil vezes:
-
Você ainda é muito nova, eu acho que...
Ela
coloca o indicador na boca e faz shhhhhhhhh, pedindo silêncio. Na porta da rua
eles se abraçam desajeitadamente entre os embrulhos, malas, mochila e pacotes.
Ele encosta o rosto no ombro dela e engole o choro, apertando-a com desespero.
-
Pai, nem vou mudar de cidade. Vou ficar perto, eu..
-
Eu sei, eu sei.
A
menina que ele criara sozinho desde o terceiro dia de vida, quando sua mulher
morreu e ele trouxe o bebê para o apartamento, desvencilha-se do abraço, dá a
mochila para que ele ajude, e ele vê a filha abrir a mala do carro, colocar
suas coisas dentro, fechar a porta sem voltar-se, ligar o motor e arrancar. Ele
ouve o ronco do acelerador distanciar-se lentamente, misturado a sirenes,
trovões e buzinas distantes.
O
temporal vem com muito vento, enquanto ele vê aquele carro entulhado
afastar-se, engarrafado no trânsito, e demora muito até que a filha dobre a
esquina e ele a perca de vista. O pai continua parado no mesmo lugar durante
algum tempo. Então sente dores fortes no peito, faz uma expressão de dor, e
apoia-se nas grades da portaria. A chuva aumenta. Ele fica só, ouvindo o zum zum zum do engarrafamento.
A
chuvarada inunda a rua e o pai observa da portaria o caos em que se transforma
a cidade com o excesso de água. O barulho da chuva é ensurdecedor e ele sente
medo. Pega o elevador e sobe sozinho. Fecha as janelas da sala com pressa
porque o tapete está respingado. Liga a televisão e só o que vê são más
notícias de mortes em desabamentos. Desliga e tenta ouvir música, mas todas lhe
trazem lembranças da filha.
Ela
nem vai mudar de cidade, pensa, tentando convencer-se. Ela virá me ver sempre,
me dará netos, este apartamento vai se encher de vida. Posso ficar com as
crianças quando ela e o marido quiserem sair, insiste.
Mas
o pai não se ouve, perambula pelos cômodos do apartamento doendo de tanta
tristeza. No espelho vê um homem calvo, elegante, apesar das rugas, das dores
nas articulações, e de todos os sintomas que anunciam o começo de um tempo de
profundo envelhecimento.
O
telefone toca, o pai não atende, ouve a voz da filha na secretária eletrônica.
Você tá bem, papai? Me liga.
O
pai não liga, vê nas ruas alguns carros sendo levados pela correnteza, um
mendigo bêbado tentando locomover-se, pessoas encharcadas e assustadas quase
correndo, e um barulho de cachoeira, que seria lindo, se não fosse numa cidade
cheia de barracos e barrancos. Aos poucos a chuva vai amainando. Venta.
Anoiteceu enquanto chovia.
O
pai vai à janela e vê na calçada uma mulher de idade caminhando, com tranças
ralas, magra e curvada, sozinha e cheia de malas, andando devagar e com
dificuldade, parando de vez em quando e trocando os volumes de mão, por causa
do peso. Ela para exatamente embaixo do poste de luz, ajeita as tranças, limpa
os óculos na barra do vestido de flores miúdas, e recoloca-os de novo, antes de
pendurar as sacolas de alça no ombro, e segurar com as mãos as malas e os
pacotes. Ela respira fundo e retoma sua marcha.
Para
onde vai esta senhora? Ele se pergunta e sente um ímpeto de descer à rua e
abordá-la. Fica observando de longe a figura altiva e solitária, carregando
tanto peso, na calçada molhada. Ouve o barulho do vento misturado ao plec-plec do sapato dela.
Demora
muito até que a desconhecida dobre a esquina e ele a perca de vista para
sempre.
Então
ele ficou só, ouvindo o barulho do vento.
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