Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

14. She is leaving home, bye bye

A filha tira do armário os casacos de frio, coloca na mala grande com cuidado. Depois é a vez dos vestidos, saias, biquínis, calças, blusas, e pronto, a mala está cheia. A segunda mala, menor, também é feita em minutos.
Pega na cozinha um saco com caixas de papelão, e enche com livros. Alguns ficam de fora, não serão relidos. Faz uma inspeção no apartamento, olhando minuciosamente cada canto, cada gaveta, retirando o que considera seu, examinando todos os objetos e recolocando-os de volta.  Verifica todos os cômodos: sala, quarto, escritório, banheiros, cozinha, área de serviço. Ela segue enfileirando as malas, as caixas, uma mochila, dois pacotes, murmura: Minhas coisas... e ri, docemente, pra dentro. Então ouve o barulho da chave na porta. O pai entra com um olhar sobressaltado, olha a fila de caixas de mudança, vira-se para ela e tenta dizer alguma coisa, mas não lhe ocorre nada. Ele olha em volta, com o olhar perdido, vai até o quarto da filha e vê os armários dela vazios.
- Pai, eu tô feliz.
- Para onde você vai? – pergunta ele, com fingida ironia. Para a casa da mamãe?  Ela olha para ele com tristeza. A mãe dela está morta.
- Para onde você vai? – insiste ele, dessa vez sem ironia.
- Viver com meu namorado na casa dele.
- Você está precipitando – afirma o pai, tolerante como se falasse a uma criança.
- Pensei durante dois anos – diz, e enfileira as malas junto à porta.
Ele senta-se na poltrona nova e finge que lê o jornal, acompanhando todos os movimentos dela com o rabo do olho. Ela vai para a cozinha e lava toda a louça do almoço como se não fosse embora, prepara o jantar como se jantasse com ele esta noite, rega as plantas como se fosse morar lá para o resto da vida.
Ela tira as roupas do varal, as que estavam secas, e passa a ferro todas. Separa as roupas de mulher, e faz mais um embrulho que coloca junto às malas.
Ela está penteando os cabelos fartos e longos em frente ao espelho do banheiro, de porta aberta. Ele diz, enquanto ela se penteia:
- Vai anoitecer..
- Que anoiteça – a filha murmura tão baixinho que niguém ouviu.
Ela sorri amarelo para que ele sorria. Ele obedece o silencioso comando e retribui o sorriso. Depois que ele sorri, ela fica aliviada, e dirige-se para a porta do apartamento. Ele segue atrás, para em frente à janela e olha para fora. Nuvens escuras avançam sobre a cidade.
- Bem – já vou. E fica parada no meio da sala. Ele olha para ela e ficam frente a frente, de pé um em frente ao outro, sérios, solenes como dois soldados.
- Me ajuda com as malas – ela pede e eles saem  carregados.
Como ele não consegue dizer nada, ela continua:
- Pai, ele está me esperando. Se der certo, a gente casa no civil e na igreja.
O pai tenta dizer que acha bom, mas engasga, a voz sai falhada, ele pigarreia e tenta de novo:
- Que bom.
Eles descem pelo elevador, trocando olhares carinhosos.  O pai repete o que já havia dito mil vezes:
- Você ainda é muito nova, eu acho que...
Ela coloca o indicador na boca e faz shhhhhhhhh, pedindo silêncio. Na porta da rua eles se abraçam desajeitadamente entre os embrulhos, malas, mochila e pacotes. Ele encosta o rosto no ombro dela e engole o choro, apertando-a com desespero.
- Pai, nem vou mudar de cidade. Vou ficar perto, eu..
- Eu sei, eu sei.
A menina que ele criara sozinho desde o terceiro dia de vida, quando sua mulher morreu e ele trouxe o bebê para o apartamento, desvencilha-se do abraço, dá a mochila para que ele ajude, e ele vê a filha abrir a mala do carro, colocar suas coisas dentro, fechar a porta sem voltar-se, ligar o motor e arrancar. Ele ouve o ronco do acelerador distanciar-se lentamente, misturado a sirenes, trovões e buzinas distantes.
O temporal vem com muito vento, enquanto ele vê aquele carro entulhado afastar-se, engarrafado no trânsito, e demora muito até que a filha dobre a esquina e ele a perca de vista. O pai continua parado no mesmo lugar durante algum tempo. Então sente dores fortes no peito, faz uma expressão de dor, e apoia-se nas grades da portaria. A chuva aumenta. Ele fica só, ouvindo o zum zum zum do engarrafamento.
A chuvarada inunda a rua e o pai observa da portaria o caos em que se transforma a cidade com o excesso de água. O barulho da chuva é ensurdecedor e ele sente medo. Pega o elevador e sobe sozinho. Fecha as janelas da sala com pressa porque o tapete está respingado. Liga a televisão e só o que vê são más notícias de mortes em desabamentos. Desliga e tenta ouvir música, mas todas lhe trazem lembranças da filha.
Ela nem vai mudar de cidade, pensa, tentando convencer-se. Ela virá me ver sempre, me dará netos, este apartamento vai se encher de vida. Posso ficar com as crianças quando ela e o marido quiserem sair, insiste.
Mas o pai não se ouve, perambula pelos cômodos do apartamento doendo de tanta tristeza. No espelho vê um homem calvo, elegante, apesar das rugas, das dores nas articulações, e de todos os sintomas que anunciam o começo de um tempo de profundo envelhecimento.
O telefone toca, o pai não atende, ouve a voz da filha na secretária eletrônica. Você tá bem, papai? Me liga.
O pai não liga, vê nas ruas alguns carros sendo levados pela correnteza, um mendigo bêbado tentando locomover-se, pessoas encharcadas e assustadas quase correndo, e um barulho de cachoeira, que seria lindo, se não fosse numa cidade cheia de barracos e barrancos. Aos poucos a chuva vai amainando. Venta. Anoiteceu enquanto chovia.
O pai vai à janela e vê na calçada uma mulher de idade caminhando, com tranças ralas, magra e curvada, sozinha e cheia de malas, andando devagar e com dificuldade, parando de vez em quando e trocando os volumes de mão, por causa do peso. Ela para exatamente embaixo do poste de luz, ajeita as tranças, limpa os óculos na barra do vestido de flores miúdas, e recoloca-os de novo, antes de pendurar as sacolas de alça no ombro, e segurar com as mãos as malas e os pacotes. Ela respira fundo e retoma sua marcha.
Para onde vai esta senhora? Ele se pergunta e sente um ímpeto de descer à rua e abordá-la. Fica observando de longe a figura altiva e solitária, carregando tanto peso, na calçada molhada. Ouve o barulho do vento misturado ao plec-plec do sapato dela.
Demora muito até que a desconhecida dobre a esquina e ele a perca de vista para sempre.

Então ele ficou só, ouvindo o barulho do vento.

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