Está tudo terminado – disse ela – não adianta mais. E começou
a fazer as malas lentamente, peça por peça, como se há muito tempo soubesse que
nesse dia iria embora e como se tivesse para onde ir.
- Para onde você vai? – perguntou ele com fingida ironia. Para
a casa da mamãe?
Ela começou a chorar em silêncio enquanto dobrava as roupas. A
mãe dela estava morta.
- Para onde você vai? – insistiu ele, dessa vez sem ironia.
- Não sei.
E ela continuou a encher malas e sacolas de roupas como se
soubesse.
- Você está precipitando – afirmou ele, tolerante como se
falasse a uma criança.
- Pensei durante quarenta anos – disse e enfileirou as malas
junto à porta.
Ele cortou as unhas acompanhando todos os movimentos dela com
o rabo do olho. Ela foi para a cozinha e lavou toda a louça do almoço como se
não fosse embora, preparou o jantar como se jantasse com ele esta noite, regou
as plantas como se fosse morar lá para o resto da vida.
Ele cochilou na poltrona velha e a tesoura pequena caiu no
chão. Ela pegou e guardou no armário do banheiro. Tirou as roupas do varal, as
que estavam secas, e passou a ferro todas. Separou as roupas de mulher, e fez
mais um embrulho que colocou junto às malas. No armário que foi dela, vazio,
guardou roupas de homem. Ele acordou sobressaltado, e procurou por ela pela
casa grande.
Ela estava fazendo tranças nos cabelos ralos e longos em
frente ao espelho do banheiro, de porta aberta. Ele entrou lá, disfarçou e
urinou, enquanto ela se penteava.
- Vai anoitecer – disse ele enquanto se abotoava.
- Que anoiteça – ela resmungou tão baixinho que ele nem ouviu.
No quarto, ela tirou o avental e calçou os sapatos, limpou os
óculos na barra do vestido e os colocou de novo. Não chorava. Tinha os olhos e
a boca secos. Ele voltou a sentar-se no sofá da sala, depois levantou-se e
ficou procurando a tesoura.
- Você viu a tesoura? – perguntou.
- Caiu no chão quando você dormia. Guardei no lugar de sempre.
- Qual é o lugar de sempre?
- O armário do banheiro.
Ele foi até lá e não encontrou.
- Droga! – Disse ele imitando raiva.
Na parte de cima – disse ela – junto do aparelho de barba.
Ele achou e sentou-se de novo no sofá e as unhas já estavam
bem curtas. Ela ligou a televisão e sentou-se ao seu lado. Pregou botão nas
camisas velhas dele, enquanto assistia um programa qualquer de domingo. Ele se
levantou, deixou a tesoura de qualquer jeito sobre a mesa para implicar pela
última vez, e pegou o jornal, que já havia relido mil vezes, no
fim-de-semana.Ficou relendo, enquanto ela costurava de olhos grudados no vídeo.
- Preciso de algum dinheiro – ela disse quando o programa
acabou, guardando as camisas.
- Pega na gaveta –
respondeu – tenho muito pouco. Hoje é domingo.
-
...
-
Se você quiser, amanhã assim que abrir o banco, eu...
-
Não é preciso – interrompeu – qualquer coisa serve.
Ela voltou do quarto com um dinheiro dobrado e enfiou no bolso
do vestido. Ele continuou relendo o jornal, ou fingindo que relia.
-
Bem – disse ela – já vou.
E ficou parada no meio da sala. Ele se levantou rapidamente,
deixou os jornais caírem no chão de qualquer jeito e ficaram de pé um em frente
ao outro, sérios, solenes como dois soldados.
-
Me ajuda com as malas – ela pediu e eles desceram a escadaria
carregados.
No portão da rua eles se abraçaram entre os embrulhos e os
pacotes e se beijaram na boca, com força, desajeitadamente. Ela desvencilhou-se
depois de algum tempo, pendurou as sacolas de alça no ombro, segurou com as
mãos as malas e os pacotes e se foi.
Ele ficou no portão ouvindo o barulho do vento misturando com
o plec-plec do sapato dela e ficou vendo aquela mulher magra e
curvada, a sua, afastar-se cheia de malas, andando devagar e com dificuldade,
parando de vez em quando e trocando os volumes de mão por causa do peso.
Começava a anoitecer. Demorou muito tempo até que ela dobrasse
a esquina e ele a perdesse de vista para sempre.
Então ele ficou só ouvindo
o barulho do vento.
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