Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

16. Viagra na Gaveta



Estavam, marido e mulher, sentados no sofá assistindo ao telejornal tranquilamente como todas as noites, despenteados e relaxados, quando a notícia estarreceu. Quase se entreolharam. Ele fingiu que estava cochilando. Ela olhou pela janela como se estivesse pensando em outra coisa. 
- Só faltava essa! - Pensou o marido. 
       -Era só o que me faltava! - Pensou a esposa despenteada. 
       Passaram a ler o jornal diário com a tênue esperança de que tudo não passasse de mais um alarme falso da Ciência. Quando morreram os seis americanos, cada qual em seu canto, marido e mulher suspiraram aliviados. Mas as notícias seguintes foram desesperadoras: o remédio estava dando certo. 
       Enquanto a mulher lavava a louça de costas para a mesa, o marido, escondido pelo jornal aberto, percorreu com os olhos aquele corpo que vinha-se arredondando sem desejo. 
 Estamos envelhecendo, murmurou ele, tão baixo que ela nem ouviu. Fechou o jornal, largou em cima da mesa e saiu empurrando a barriga e arrastando os chinelos de propósito.
Enquanto se afastava devagar não viu o olhar sem alegria da mulher que o acompanhava de cima a baixo. 
Foi um homem bonito, contando ninguém acredita. - Pensou ela voltando a encarar as panelas.  Depois do banho quente ela passou as mãos úmidas sobre o vidro embaçado e olhou seu próprio corpo esquecido há tanto tempo. Nublada e triste, estava patética. Virou de lado, empinou o pescoço e murchou a barriga com força. Dez segundos depois soltou o ar quase roxa e deu um muxoxo. 
Estamos perdidas, disse para a senhora do espelho que precisava urgentemente retocar as raízes brancas do cabelo.
E foi a vez dele, arrepiado de frio, mirar-se e a seu pau encolhido. Logo embaixo da cintura formaram-se duas protuberâncias molengas.  Os pentelhos caíram quase todos. Meu Deus! - pensou ele. 
Temerosos de algum possível confronto, passaram a se falar menos e a ler o jornal quase escondidos. As notícias estavam cada vez mais assustadoras. Todos os dias homens grisalhos e senhoras distintas apareciam na televisão para falar de sexo. Ela agora só entrava na sala na hora da novela. Ele deu graças a Deus porque podia assistir ao noticiário sozinho.                                                
Quando ela viu, pendurada na banca, uma revista mensal que trazia uma reportagem de trinta páginas sobre o remédio, não resistiu e comprou num impulso impensado. Com a revista dobrada debaixo do braço, seguiu numa direção qualquer que não fosse a do seu apartamento. Depois de rodar com a revista durante quase meia hora, sem encontrar um só banco de praça seguro, não aguentou mais e retomou o rumo de casa. Na volta, comprou duas revistas femininas, uma de receitas dietéticas e a outra de fofocas da televisão para disfarçar, fez um rolo gigante, enfiou a revista secreta no meio, e adentrou o apartamento, pé ante pé.                                          
Graças a Deus ele ainda não estava em casa. Ela entrou apressada no quarto, olhou em volta e pensou num lugar onde pudesse esconder a revista, coração aos pulos, arrependidíssima de tê-la adquirido. Levantou uma parte do colchão e quase caiu desmaiada. Embaixo do colchão já havia uma outra igualzinha. Xingou:     
        - Homem não presta mesmo.                                            
       Trancou-se no banheiro como um adolescente com sua revista e informou-se de tudo. Em seguida destruiu as provas: colocou a revista num saco de lixo e jogou pela lixeira abaixo. Verificou se não havia esquecido nada, nenhuma pista, arrumou a cama esticadinha e quando ouviu a chave na porta foi lavar umas louças.
Sem-vergonha, pensou, vem assoviando.Jantaram conversando os assuntos de sempre, só que agora ela não perdia um só movimento ou suspiro dele. Nada passava despercebido. Ele ia ver só.
Desse dia em diante, ela passou a observá-lo até quando dormia para ver se pescava algum sonho indevido. Vasculhava seus bolsos, cheirava as cuecas, ficava atenta aos telefonemas. Muitas vezes ele flagrava a mulher, olhos fixos bem abertos em sua direção. Ele levantava as sobrancelhas e perguntava baixinho:
- Que foi? Ela nunca se deu ao trabalho de responder.  Ela era metódica e disciplinada: quando ouvia o chuveiro xeretava a roupa. Quando via da janela que ele havia dobrado a esquina, revirava as gavetas. Como também trabalhava fora, não tinha muito tempo sozinha para as inspeções.
Quem procura acha? Ele no banho, ela sem óculos achou a embalagem, uma cartela de pílulas brancas faltando três. 
- Tomou três! - grunhiu a mulher enfurecida. Quando ele saiu do banheiro encontrou a mulher pelada com uma toalha na mão esperando do lado de fora. Ele arregalou os olhos e não pôde deixar de olhá-la toda. Ela empinou o nariz fingindo indiferença e murmurou: 
- Pensei que tinha se afogado aí dentro.  E bateu a porta do banheiro esfumaçado. No mesmo dia, assim que ele saiu, ela releu a revista dele e descobriu que o remédio era azul, aliviada. 
Um dia ele chegou em casa mais cedo e ela estava grudada no vídeo, de óculos de grau e sobrancelhas crispadas, sentada numa cadeira pertinho do aparelho, com o som alto e os olhos atentos, tão envolvida com as notícias sobre as pílulas azuis que nem se deu conta que ele havia chegado. 
Ele, por sua vez, ficou tão nervoso que saiu de fininho e entrou de novo, cantando bem alto. Ela desligou a televisão rapidamente e pensou, furiosa: 
       - Sem-vergonha! Vem cantando... 
Ela ficou muito impressionada com a notícia de que três senhoras idôneas moveram uma ação na justiça contra o laboratório que fabrica o remédio, pois seus velhos maridos de sempre abandonaram-nas por outras sapecas, desmontando, com esse gesto, três famílias decentes e americanas. 
       Noite e dia, ela só tinha um pequeno pensamento:  Vai ver só.  
Quando o relógio velho de cabeceira despertou uma hora mais cedo e ela vestiu calças jeans, sandálias e blusa colorida e saiu para caminhar na praia pela primeira vez depois de mais de dez anos, ele pulou da cama pensando:  Aí tem coisa! 
Quando ela se mancou e substituiu as calças jeans por um short, uma viseira, um par de tênis e outro de óculos escuros e saiu no mesmo horário, ele perdeu o sono pensando:  Se tem!  
E o pior aconteceu quando o short ficou frouxo porque ela havia emagrecido cerca de duzentos gramas e justo na cintura. Bronzeada, ela pintou as raízes dos cabelos e aproveitou para mudá-los de cor, sempre pensando:   Vai ver só!  
Ele perdeu o apetite. Ela nem se preocupou:Assim você emagrece. 
Quando a secretária dele precisou ligar num domingo consultando sobre uma matéria urgente, a mulher sorriu entre os dentes:  É ela!  
E segunda-feira de manhã apareceu de surpresa no escritório. Encontrou o marido no meio de uma reunião, embaraçadíssimo com a visita inusitada. Ele apresentou a mulher aos colegas, ofereceu-lhe um copo d´água e uma cadeira e pediu que ela aguardasse até que concluíssem o que estavam fazendo. 
Ela aguardou sentadinha, de batom, com a bolsa no colo, de pernas de meias de seda cor da pele cruzadas e parcialmente protegidas por uma saia preta quase justa. Vendo-o trabalhar, seguro, competente, docemente autoritário, com as respostas na ponta da língua, a mulher se pegou sorrindo sem querer e então olhou fixamente para a retina da secretária e pensou:  É meu. 
Quando a reunião acabou ela enfiou a mão com força no braço dobrado dele, levantou a cabeça, fez barulho de propósito com os saltos e despediu-se da jovem secretária: Prazer em te ver, filhinha. 
Eles almoçaram num restaurante no centro da cidade. Perto do trabalho dela. Escolheram uma mesinha discreta no fundo. Ela conhecia muita gente. Não parava de cumprimentar pessoas. Ele sentia-se deslocado e surpreso. Percebeu, atônito e desconcertado, que alguns homens, tarados, olhavam para as pernas dela.
O almoço durou mais tempo do que o esperado, tomaram até alguns chopes e quando atravessavam o restaurante comprido de ponta a ponta para ir embora ele moldou seus cinco dedos na nuca dela com mãos de alicate, encarando os demais fregueses e pensando:   É minha! 
Terça-feira ele nem foi trabalhar. O que essa louca está tramando? Deitado na cama de casal, sozinho, imaginava-se vivendo sem ela e não conseguia. Olhava a louça por lavar, abria a geladeira e mirava um a um, os alimentos frios com lágrimas nos olhos, pegava os porta-retratos com fotos dos filhos, dos netos, olhava fixamente as camisas brancas amassadas no cesto, encarava o varal cheio de roupas distantes lá no alto e, vagando no apartamento silencioso, desatou a chorar.
De terça para quarta nenhum dos dois dormiu. Ela, fingindo-se de desmaiada, mudava gemendo de uma posição lânguida para outra posição lânguida. Ele espiava mas tinha muito medo de não conseguir. Ele pensava: Ninguém entende as mulheres. Ela pensava: Está vendo só? 
Quarta-feira, como um boi que se dirige ao abatedouro, ele foi ao médico, expôs seu caso, e solicitou o remédio. Dirigiu-se a uma farmácia bem distante, pediu o remédio enganando que era para seu avô velhinho, colocou a embalagem dentro do bolso e voltou para casa. Assim chegando, escondeu o embrulho fechado no fundo da gaveta e foi tomar um banho. E não é que havia mesmo emagrecido um pouquinho? A mulher chegou do trabalho depois, cabelos escovados, unhas feitas, lembrando ao marido esquecido que hoje era o dia das Bodas de Ouro dos pais dela.

Enquanto ele se embelezava e ela se maquiava, tomaram dois copos cheios de uísque com gelo tirado de uma garrafa antiga que ninguém lembrava que ainda existia por lá. Distintos e perfumados partiram para a festa. Alegrinhos, falavam alto, riam à toa, papeavam de rodinha em rodinha e de vez em quando seus olhares se encontravam.  Na hora da fotografia da família toda emparedada contra os arranjos de flores exagerados, ele grampeou com a mão direita a nuca dela e escorregou para as costas enquanto ela ainda estava séria e o fotógrafo pedia sorriiisos! sorriiisos! e depois ele desceu a mão boba até a bochecha da bunda e apertou e foi exatamente quando ela sorriu e o fotógrafo gritou jááááaáá! que ela gritou cheeeeeeeese! porque ele estava tentando suspendê-la com  aquela mão de tesoura. Ela apertou as pernas, fechou os olhos, deixou a cabeça balançar e cair bem no ombro dele às gargalhadas e só então estourou o flasssssssssssssh! Dali mesmo foram direto para o motel mais próximo, embriagados e felizes, onde reaprenderam a se esbaldar para sempre e sem remédio.

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