- Não gosto desse
teu jeito, diz o menino de dezoito anos, entrando no apartamento.
- Boa noite pra você também, responde a mãe, que dançava na sala,
treinando para a apresentação de fim de ano de dança holística.
O rapaz vai para seu quarto e fecha a porta com força.
- Preferia me ver chorando pela casa? Grita a mãe, desligando o som, e
parando a dança, humilhada.
A mãe confere o figurino do evento, evitando a raiva, e toma um banho
longo, depois sai para as compras, entra no mercado, farmácia, Pet Shop, volta
pra cassa cheia de embrulhos, logo a campainha toca, é o entregador de compras.
A mãe agradece e recebe os legumes, verduras, frutas, arroz, feijão, sucos,
sabonetes, alho, óleo, leite, ovos, farinha, creme de leite, leite condensado,
fermento, carne, frango, feijão, linguiça, Todinho, chocolate, granola,
yogurtes, cebola. Arruma tudo na geladeira e nos armários, depois faz a janta,
como toda noite.
É sábado e anoitece.
A mãe põe a mesa, acende a luz da sala porque escurece. Então chama o
filho, uma, duas, três vezes. Abre a porta do quarto, ele está ligado no
computador, não olha pra ela, diz:
- Tô indo.
Ela desiste de esperá-lo, e para não criar caso, janta sozinha, pega a
sobremesa, come, tira os pratos da mesa, lava todos, coloca a comida que sobrou
em potinhos e guarda na geladeira.
Depois tranca-se em seu quarto, põe um DVD de dança holística e fica
olhando, tentando memorizar os movimentos sem fazê-los. Nomeia os passos e
escreve porque precisa saber de cor e salteado todos. Ouve a voz do filho
falando no celular, alegremente. Ri muito e combinam coisas. A conversa é
longa, a mãe preferia que ele falasse mais baixo, não consegue concentrar-se na
dança.
A mãe sai do quarto, enche o regador e molha as plantas, limpa as duas
gaiolas de passarinhos, separa água para o aquário, faz contas, prende boletos,
cheques e post its com um clips grande e coloca na caixa de madeira, onde
guarda os pagamentos.
Tira as roupas do varal, dobra, separa calças de casacos, roupas de
baixo, deixa as que precisam ser passadas a ferro em cima da máquina, e leva
para os armários as que já podem ser guardadas. As do filho, leva para o quarto
dele, dá três batidinhas na porta, entra e coloca as roupas no armário, camisas
no cabide, cuecas e meias na gaveta, aproveita e arruma um pouco a bagunça. Que bagunça, diz. O filho
não responde, ela olha para ele. O rapaz continua falando, talvez pelo skype,
talvez pelo celular, o certo é que fala muito, e rindo, diverte-se. O som é uma
música desagradável, a mãe observa o filho. Raramente se vêem. A mãe sai,
ignorada, fecha a porta e vai para a cozinha.
A mãe faz pipocas no microondas, pega um DVD e esparrama-se no sofá da
sala. O filme é interessante, um documentário sobre danças circulares, que diz,
enquanto exibe imagens de dançarinos: “Você
pode descobrir que através da sutileza dos gestos e movimentos corporais há
possibilidades para criar, inovar e transformar o seu estilo de vida. Enquanto
o corpo se movimenta no ritmo da música, muitas qualidades corporais e emocionais
são despertadas e criam um campo pleno de possibilidades, vitalidade e alegria
de vier”. A mãe está absorta, completamente envolvida pela maravilha do
tema e das cores, ouve ao longe uma voz perguntando: Cadê o jantar? A mãe enche
a mão de pipocas e come, lambuzando os beiços de sal. O filho pergunta de novo
e de novo e de novo e então grita: Cadê o jantar???
A mulher olha para aquele moço desconhecido, assustada: Quem é você? Ela
pergunta, levantando-se tão rápido que as pipocas caem no chão espalhadas. Ei,
não tem jantar? Pergunta ele, com a voz mais baixa. Ela grita SOCORRO e sai
correndo pelo apartamento. Sou eu, ele diz, com os olhos arregalados, seu
filho, o Rodrigo, ficou maluca? SOCORRO! Ela grita e repete SOCORRO, e berra,
os vizinhos chegam, e o rapaz é retirado do apartamento para que ela se acalme.
Ela se acalma. O pai do Rodrigo é chamado, muitos adultos conversam entre
muitas portas fechadas, mas a mulher é irredutível: não conhece este rapaz que
invadiu a sua casa.
Depois de tirarem Rodrigo do apartamento, consultarem psiquiatras e
advogados, a família decide deixar a mulher sozinha por uns tempos, Rodrigo é
levado contra sua vontade para a casa do pai, que tem outra mulher e outros
filhos pequenos, cada um com seu quarto, seu computador e sua televisão em
frente à cama. Rodrigo tenta telefonar para a mãe, mas ela reafirma que é
engano, que não sabe quem ele é. Rodrigo entra em profunda depressão e tem todo
o apoio de seu pai.
A mulher separa o figurino do evento, toma um banho longo, depois sai
para as compras, entra numa loja de conveniências e compra pão integral e
sucos, e um maço de cigarros porque voltou a fumar, compra frutas e mais nada.
Em casa, não faz janta, nem põe a mesa, liga o som bem alto, e labisca as
frutas em pedaços enquanto dança pela sala vazia, treinando seus passos para a
apresentação de fim de ano de dança holística.
A mulher experimenta o figurino, faz a maquiagem, penteia-se, arruma-se
como se arrumará no dia da festa, tira fotos de si mesma e posta no Facebook, criando
um evento e convidando amigos. Os amigos começam imediatamente a curtir. Ela
ri, sozinha.
Que jeito?
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