Dona Pandora tinha
sessenta e oito anos quando nasceu sua primeira e única neta. Olhava a
pequenina no berço e pensava nas tantas conversas que gostaria de ter com ela.
Havia tanto o que dizer, tanto o que contar. Difícil aceitar que, pelo avançado
de sua idade, talvez não a visse adulta. Não conversaria com ela como havia
feito, a vida inteira, com sua filha, sempre tão presente e amiga. Tinha tanto
que dizer.
Dona Pandora queria viver
muito, mas como nunca se sabe, comprou um caderno bem chique e começou seu solitário
monólogo. Preocupada com o destino de seus dizeres, e na sua responsabilidade
de ser a depositária da memória da família, postava os textos num blog para que
a criança, quando fosse moça, lesse.
Insegura quanto à durabilidade
da Internet, Dona Pandora decidiu-se: comprou uma caixa grande, cobriu-a com
feltro colorido e lá dentro guardou o primeiro e o segundo caderno dirigido à
neta pequenina. E o terceiro e o quarto caderno. Esta já nasceu com a leitura
atrasada, se ria.
Dona Pandora
aproveitou e guardou na caixa também livros imperdíveis, fotografias, e CDs de
filmes e textos, e DVDs com conteúdos similares. Como era poeta, achou por bem
guardar um exemplar de cada um dos livros que ia publicando, e como sua filha
era cantora, guardou também um exemplar de cada CD que a filha gravava.
Acontece que o avô era músico, assim como seu genro, pai da netinha. E o
meio-irmão, fotógrafo. Já era praxe fornecer uma cópia de cada coisa... pra
caixinha.
Dona Pandora fez um
compartimento dentro da já pequena caixa destinado a guardar discos. Mas
vivemos num mundo transformista. Surgiram os SDCs e Dona Pandora não pensou
duas vezes, escrevia para a neta no caderno, depois digitava e salvava em SDCs.
Só mais tarde vieram os chips portáteis.
Em seis meses a caixa ficou
pequena, e Dona Pandora comprou uma maior, de compensado leve. Guardava um ou
outro brinquedo, e coisas interessantes que encontrava: o livro que seu tio
escreveu contando a saga da família mineira, a notícia da morte do tio-bisavô
da menina que, como quase todos em Diamantina, cuidaram de viver a vida às
custas das pedras preciosas. O texto era muito bem escrito, valia a pena. E
recortes de jornal, havia muita gente famosa na família.
Dona Pandora já se
preparava para completar setenta e oito anos, e muitas coisas já havia mostrado
à neta, principalmente fotos da primeira infância dela. Pelos antepassados, a
menina ainda não se interessava muito. Dona Pandora tinha fé que, quando
crescesse, a menina consideraria esta caixa uma relíquia.
Mais que tudo, Dona
Pandora queria mostrar à neta que um dia fora jovem, divertida, e livre
pensadora. Fora jovem na década de setenta, havia morado numa comunidade, num
barco, numa casinha de pescador sem luz elétrica, ih, tanta coisa. Tinha medo
de envelhecer demais, perder a memória, e desmanchar-se na senilidade, ou
morrer de repente, e deixar uma lembrança da vovó velhinha, tadinha. Essa não.
Escrevia sobre tudo. A importância da alegria, mesmo nas dores da vida, essa,
que nos prega tanta peça. Pensava também na importância de registrar a história
dos antepassados. Pensava e escrevia. Tinha medo que a netinha esquecesse os
passeios que faziam juntas, as conversas interessantes que tinham, então
registrava tudo, para que não caíssem no esquecimento.
Ela mesma, Dona
Pandora, às vezes se esquecia. Com a idade, diminuíra o HD da memória. Esta
descoberta fez com que Dona Pandora escrevesse também para si mesma, contando
seus dias, suas reflexões, e tudo que não queria esquecer. E como a família era
criativa, mais livros publicados, CDs gravados, e filmes, teses, viagens pra
fora, Dona Pandora guardava um exemplar de cada, para que a neta não perdesse
nada do que acontecia na família, enquanto ela estava ocupada em crescer,
amadurecer, estudar, e brincar.
A caixa, com o tempo,
tinha que ser substituída por outra maior, tanto a dizer e mostrar. Dona
Pandora encarou os oitenta e oito, e a situação quase se inverteu. A neta, com
vinte anos, queria o caixote. Era seu, não era? Tinha até seu nome escrito.
Queria ouvir os SDCs antigos, ler os livros, curtir as fotografias, conhecer-se
melhor nas lembranças da infância. Queria ela mesma escrever e guardar seus
diários ali. Mas cadê que Dona Pandora liberava a caixa?
A neta não percebeu
que era ali dentro da caixa que Dona Pandora agora vivia. Mais alguns anos, e o
tempo presente foi perdendo a importância. Entretanto, no passado redescobria
cada dia um fato, uma fala, uma música, um lugar que não havia mencionado.
Escrevia e lia, relia. E lendo, relembrava. Relendo, não esquecia.
Os CDs e os DVDs,
nenhuma aparelhagem lia. Continuavam guardados com fitas cassetes e filmes
super 8 que herdara dos irmãos falecidos. Estavam ali, firmes, os papeis:
cadernos, cartas, fotos, recortes de revistas. Dona Pandora cuidava que não
cheirassem a mofo nem amarelassem, periodicamente refazendo as cópias.
Muito do que escrevera
para a neta já havia tido oportunidade de dizer pessoalmente. Os diários
estavam ficando meio obsoletos, na medida em que Dona Pandora, ela mesma,
contava os acontecidos, e dava os conselhos que, com tanto zelo, havia guardado
para a hora certa.
Noventa e oito para
Dona Pandora! Trinta para a neta! Ninguém esperava que a velha vivesse tanto.
Fumava, pegava sol no rosto a qualquer hora, não fazia exercícios físicos,
bebia vinho toda noite, e às vezes jejuava pra ficar magra. Velha, mas magra.
Justamente no mês que
sua neta se casou, Dona Pandora levou um baita tombo. Assustou-se porque sabia
que os velhos saudáveis morrem de tombo. Não tinha medo da morte, mas adorava a
vida, e não queria abandoná-la de jeito nenhum. Sua neta foi morar em Belo
Horizonte com o marido mineiro, e ficou grávida no primeiro mês de casada.
Bisavó? Dona Pandora
olhava a caixa, paralisada. Precisava contar tanta coisa pra bisneta que
nasceria. Procurou o livro que seu tio escreveu contando a saga da família
mineira, a notícia que saiu no jornal da morte do tio-bisavô da menina que,
como quase todos em Diamantina, cuidaram de viver a vida às custas das pedras
preciosas. O texto era muito bem escrito, valia a pena. E recortes de jornal,
havia muita gente famosa na família. Dona Pandora, no início da década de
oitenta, era figurinha fácil num jornal famoso na época, era impresso em papel,
e havia espaço para novos escritores, chamava-se Jornal do Brasil, e era o
preferido de Dona Pandora, seus amigos e os intelectuais de esquerda da época.
Teve seus cinco minutos de fama. Tinha os recortes de jornal pra comprovar,
impressos e escaneados, tudo no chip subcutâneo.
Precisava contar que havia sido
hippie, morado numa comunidade na Praia de Geribá, numa aldeia de pescadores à
beira da praia, sem luz elétrica nem água encanada, e em São Pedro da Serra, e
que lá, naquele tempo, os jovens acreditavam que iam mudar o mundo, pelo verde
ou com armas. Será que a bisneta ia saber que sua bisavó era a mulher mais
bonita da Rua Montenegro, frequentara o Castelinho, o Posto Nove, que já havia
até mudado de número, e que havia morado num barco durante sete semanas? Era
jovem na década de setenta, havia morado numa comunidade, num barco, numa
casinha de pescador sem luz elétrica, ih, tanta coisa. Já escrevera isto? E
também que... o quê? Eu estava falando mesmo o quê? Dona Pandora deu um muxoxo.
Era preciso anotar tudo. Enxergava cada vez menos.
Sua neta nem ousou pensar em levar
a caixa pra Minas, era muito pesada, e ela já conhecia de cor e salteado seu
conteúdo.Telefonou pra avó dizendo que no Natal viria, e que traria coisas
lindas para colocar na caixa. Pro bebê que vem aí, dissera. Essa minha neta...
essa menina já me deu muita alegria e já me fez rir muito, sempre foi esperta.
Uma vez, uma vez o quê? Eu estava pensando mesmo o quê? Por que minha neta não
vem mais aqui? Há meses não vem mais aqui, comprei essa boneca linda pra ela, e
pra quê? Ela não vem mais aqui. Há quanto tempo ela não vem mais aqui? Um mês?
Um ano? Deixa ver. Janeiro foi o aniversário de quem? Teve um bolo aqui. Tenho
certeza que teve um bolo aqui.
Olhou-se no espelho.
Como estava pequena. Os braços, como eram magros. A perna, as coxas, que
palitos! A pele, como era fina, qualquer esbarrão ficava roxa. Os cabelos,
ralos. Ela diminuíra.
Dona Pandora, com
esforço, abriu a grande caixa e olhou. Entupida, quase. Se arrumasse melhor,
ainda caberiam algumas memórias pequenas. Ajeitou a pilha de livros que considerou
importantes de se reler, deu outro jeito na arrumação dos álbuns de fotografia.
Abriu um, ao acaso. Deu de cara
com uma foto. Lá estava ela, jovem, viçosa, cabelos longos, flor no cabelo, nos
braços de um moço bonito, com cara de apaixonada. O rosto mergulhado nos ombros
dele, aconchegada. Ele era... quem era ele? Que lugar era aquele? Quem eram
aquelas pessoas em volta? Por que estava vestida daquele jeito?
Dona Pandora sentou-se
na beirada da caixa, foi escorregando lentamente, encolheu-se entre os livros,
fotos, cadernos e chips de música.
Quando percebeu, estava deitada
lá dentro sem quase ocupar espaço, de tão pequenina. Tirou a foto do álbum e
ficou olhando. Olhava a imagem de si mesma tão jovem, tão linda, tão
visivelmente apaixonada, por quem? Que rapaz lindo, pensou. Que boca. Que pele,
a minha. Que sorriso, o dele, e como me olha. Que braços fortes, e com que
segurança me abraçava. Nossos corpos colados. Olhava encantado pra mim, quem é
ele? Meu Deus, quem é ele?
Dona Pandora esqueceu
a neta que não vinha mais visitá-la, aconchegou-se entre as tralhas, quer
dizer, lembranças. Fechou a caixa devagar, deixando uma frestinha de luz bem
pequena, e ficou lá dentro, quietinha, cheirosa, velhinha, olhando o rapaz, pra
sempre.
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