Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

03. Bate o Sol no Chão




       Dia do aniversário do meu bruxo, do meu homem mágico que eu quis tanto um dia e que depois não revi.
       Almoçaríamos juntos? Sim, meio-dia. Aniversário dele. Trinta e sete? Trinta e oito? Meu amante lindo, casou-se quando nem nos conhecíamos, eu tinha nove anos. Leão, escorpião. O que de nós dois? Escolhi um relógio. O mais caro.
       Mudei de roupa. Pintei o rosto. Hoje à tarde não trabalho. Hoje à noite não durmo. Amanhã não penso, fico estirada lembrando. Prendi o cabelo. Comprei roupa nova. Raspei as pernas. Perfumei-me. Aniversário do meu amigo, do meu anjo, meu amante lindo, separado de mim, há tanto tempo.
       Não quero o Mário, não quero o Mário, não quero nada, ninguém, quero o meu aniversariante impossível, meu caso de amor perdido. Meu homem casado, tão mais velho que eu. Meu menino, que saudades. Hoje é um dia muito especial e eu não vou beber. Amanhã quero lembrar tudo direitinho. (Em quantas vezes posso pagar este relógio?).
       Ele esteve nos meu sonhos, secreto, caminhando elegante e sóbrio como um bailarino triste, meu dragão de sete cabeças, como eu tenho me perdido! Quantos outros nem se compararam a ti, quantos tiveram a sua cara, disseram tuas palavras, dormiram no teu berço, brincaram com teus brinquedos. Meu doce amargo, meu menininho gordo, quantos anos, hoje? Tanto tempo não nos vemos. Dei tanto mau passo, tanto pecado, quanta confusão tenho feito nesse tempo.
       Tudo em volta é azul quando eu relembro. Meu homem mágico, guerreiro, furor, que me indicou meu coração e depois foi embora. Quanta saudade, quanta vontade que retornasse aquele tempo, nosso, louco, lindo.
       O telefone toca, é o Mário. Despisto. Ah, ele insiste tanto que eu perco o saco. Homem-durex, carrapicho, apaixonado demais fica com cara de mãe, detesto.
- Olha, eu hoje vou almoçar com um amigo meu. Você não conhece.
       Dane-se! Amanhã ele perdoa para o meu azar.
       Pintei as unhas, esmalte vermelho como ele gosta. Hoje não bebo. Amanhã não acordo.
Como era bom encontrá-lo sem combinar. Era bom tê-lo de surpresa, inesperado, maravilhosamente esperado, sempre, o namorado da primeira vez. O coração descompassar, era bom. Era ótimo não saber o que ele pensava, era como se ele estivesse sempre a cavalo, sempre nos campos, sempre ao nascer do sol. Por que o tempo passou, personagem dos meus sonhos, eu te queria tanto! Homem-lagarto-leão, bicho-homem dos meus sonhos, eu te queria tanto!
       Preparei-me como uma noiva virgem, como uma mãe gestante, revê-lo! Não estou diferente, estou? Passa a tarde comigo. Como era bom, antes! Quando terminou exatamente não sei. Não quero o Mário, ainda que ele me queira, que faça as minhas vontades, que chore por mim de noite, azar!
       Não tenho fome, tenho saudade e impaciência. E amor, será que ainda tenho? Meio-dia o telefone toca. É ele dizendo que não vem, aposto. Acertei.
       Não vem. Ele não vem. Meu bruxo dizendo que não vem. Vou para o escritório e trabalho feito uma louca e não penso. Não choro, não penso, não lembro, minha cabeça está vazia. Meu coração, morto. Não sofro. Não ligo. Tudo já acabou faz tempo.
       Onde é que se vai hoje à noite? Encontro vocês lá. (Vodka). Mesa em mesa. Bebo sim e pronto. Agora não quero mais ficar aqui, vou para outro bar e quem quiser que me acompanhe. Juntamos três e depois quatro mesas. (Quero uma vodka). Mário não tira os olhos de mim. (Você está bebendo demais. Não amola). Sento do outro lado e seu olhar me alcança como um binóculo, saco! Essa piada eu já conheço! Cadê o banheiro? Como é que é, minha filha? Morreu aí dentro?
       Ô, garçom! Me vê uma vodka! Ô garçom! Com esse mau humor não devia ser garçom, devia ser polícia! Cadê meu copo? Ainda vou esganar o Mário se ele continuar me olhando com essa cara de cãozinho vadio. Vou irritá-lo ainda mais, quer ver? Garçom, então me traz um uísque! (Você está dando vexame! Não enche!)
       Esta vida engraçada. Não quero o Mário, quero o Beto. Que conheci hoje, que me agride com palavras e não me pega pelo braço, que tem olhos azuis e está interessado em minha amiga que não veio, então ele me belisca por baixo da mesa e eu vou com ele. Na casa dele tem vinho. Tomamos e deitamos no chão mesmo, no tapete redondo da sala. Ele apaga a luz sem palavras e me despe.
       Esqueci. Não me lembro. O que a noite me trouxe tenho uma vaga lembrança.
       Meio-dia abro os olhos, o sol arde. Perdi a hora, à merda o trabalho! Enjôo, tédio. Beto deve estar no banheiro, acordo só. No tapete redondo da sala, deitada, nua, a porta da cozinha aberta, minhas roupas de ontem espalhadas. Vejo a empregada (cara de tacho). Bom dia. (Que pensa de mim a dormir no tapete tão sozinha, tão nova, tão nua?). Então enfio a blusa, bebo água, água. (A empregada me observa? Fico séria). Com roupa de ontem, tonta, enjoada, feia, lavo o rosto e então as lágrimas descem sem controle com vinte e quatro horas de atraso. Lágrima e sabão no olho, meu pescoço está molhado. Quero o Mário. Quero o Mário, que me console.

       Direi a ele. Direi que dormi de porre, no tapete redondo, que dormi com o Beto, direi que acordei no chão, nua, o sol entrando em mim pela janela, que a porta da cozinha estava aberta, que estou gripada, sozinha, infeliz, de ressaca pelo dia do aniversário de um bruxo.

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