- Desce.
Décimo, nono, oitavo, sétimo, sexto, quinto, quarto, terceiro, segundo,
primeiro, térreo.
- Témanhã.
- Témanhã. Bom descanso.
Quase esbarrar em alguém e seguir. Atravessar sinal verde.
Desviar, perder-se na multidão dobrando a segunda esquina, onde há uma loja de
esportes, as vitrines, conheço de cor.O corpo segue mecanicamente. Os pés já
conhecem o caminho. Os olhos enxergam sem olhar. O ouvido não ouve.A expressão
é aérea porque a cabeça voa. Sinal amarelo, corridinha. Fila do frescão.
- Leblon?
- É.
Seis e vinte. Maria Helena. Mais alta que eu, magérrima, olho
preto enorme, cabelo cacheado ruivo. Pintado, ela confessou. Bonita não, mas
que boca! Que cheiro! Um dentinho quebrado, uma carinha travessa, um nariz
arrebitado. Ontem a troca de algumas palavras em plena lanchonete na hora do
almoço virou conversa, virou desabafo, eu me abri - por não conhecê-la, poder
ser qualquer homem aos olhos dela, não ter dito nem meu nome, porque ela ia
embora do rio no dia seguinte, eu me abri. Disse coisas que nem sonhava dizer,
quanto mais para uma mulher, quanto mais para uma mulher desconhecida, quanto
mais às quatro da tarde num motel do centro da cidade. Eu me abri. Disse coisas
que nem sabia que pensava, disse coisas que jamais diria para Rita. Eu queria
conversar com a Rita como se ela fosse homem, como se ela fosse meu amigo.
Seis e vinte e cinco. Helena. Posso te chamar de Hélen? Você tem
cara de Hélen. Que riso largo ela me devolveu, sentada na cama de pernas
cruzadas em frente a mim, que nudez! Pode,, eu vou te chamar de Charles. Ela
diz:
- Depois que fui morar na fazenda, venho pouco ao Rio, tudo pra
mim tem gosto de adeus. Sabe o que é gosto de adeus? Não? É um gosto igual ao
de uma comida, na boca. Já sentiu gosto de lágrimas? Pois é, é um gosto assim,
mas é um gosto alegre., como se eu fosse morrer, mas como se eu fosse pro ceu.
Agora. Você tem gosto de adeus, é um gosto bom, gosto de última música, de
último mergulho. É um gosto muito bom de se sentir.
Seis e trinta e cinco. Essa é a fila do Leblon, moço? Âhh? Heim?
Essa é a fila do Leblon? É.
Hélen. Eu queria ter sabido mais. O que deu na cabeça dela pra
largar tudo e se meter numa fazenda? Como será Hélen acordando, fazendo comida,
brava, triste?
Hélen, minha mulher deve estar preocupada commeu atraso, nunca
chego em casa a esta hora. Posso telefonar?
Alô, Rita, sou eu, Carlos. Olha, amor, vai jantando, não me espera
não, encontrei um amigo meu do Zacharias, aquele do retrato, grande amigo,
estamos batendo um papo, ele trabalha com imóveis, vou aproveitar e ver se ele
me dá algumas dicas sobre o nosso financiamento. Tá legal. Sei. Um beijo.
É horrível mentir, náo é, Hélen? Eu me sinto um crápula. Charles,
você gosta muito dela? Gosto. Muito.
Seis e quarenta, este ar-condicionado do frescão é exagerado
demais, daqui a pouco vou espirrar. Proibido fumar. O trânsito não anda. E se a
rita me deixasse? A Rita nunca vai me deixar. Se a Rita me deixasse, eu ia
sofrer, mas ia sentir alívio. É isso: sofrimento e alívio. Como é que eu seria
sem a rita? Às vezes penso que não amo a rita, que sou dependente dela como sou
do cigarro. Nessa droga de frescão faz um frio dos diabos e não se pode fumar.
O ônibus está gelado, apagado, musicando, lento, a cobradora de
baton vrmelho, pó de arroz demais, aproxima-se recolhendo o dinheiro da
passagem. Ela não sente frio. O dinheiro trocado na mão dos mais previdentes.
Um ou outro dorme. Ela encosta o dedo quase sem olhar nem tocar, sorri um
sorriso congelado de foto, quem acorda sobressalta e se atrapalha à cata da
carteira, olhos vermelhors, o sono do fim de expediente, acabou o serviço, mas
já é noite. O que fazer do resto do tempo? Comer? Ler? Ver televisão? A noite
está escura e feia. O calor e a claridade e o sol que todos vimos da janela já
se foram esconder na escuridão.
No frescão faz frio demais. Atchim! Saúde. Obrigado. Por que droga
a Rita não colocou o lenço no bolso do meu paletó? Passa o dia inteio à toa e
não pode colocar uma porcaria de um lenço no bolso do meu paletó?
Quinze pras sete. Hélen. Meu beijo custou pra encaixar com o beijo
da Hélen. Corpo a corpo então foi pior. Gostoso foi, mas eu não soube nem
abraçá-la direito. Estou acostumado com a Rita, a Rita é menorzinha, mais
cheinha, mais carne. O mais interessante
com a Hélen foi justamente esse desencaixe. Será que ela mora com alguém? Por
que não diria? Será que ela conversa e
ri e deita com qualquer um que conhece em lanchonetes? Eu disse logo que era
casado, não disse? Uso aliança, não uso? Retrato da Rita na carteira, não
tenho? Será que a Hélen gostou? Da próxima vez... que próxima vez? Se Hélen
adiasse a viagem... em vez de ir amanhã fosse semana que vem... uma semana não
ia fazer diferença. Por que não peço pra ela ficar? Chegar em casa e encontrar Rita de robe,
cinzeiro cheio, televisão ligada, a Rita não me deixa nunca.
Sete horas, eu engarrafado, que frio! Trim! Dá licença? Pois não.
Que fome. Que sono. Este mês vou ficar apertado, juntou tudo, casamento do
Mauro, médico da rita, conserto da máquina de lavar, o pior são as despesas que
aparecem sem a gente prever. E ainda temo aniversário do meu pai, é antes do
outro pagamento.
Sete e cinco.
O telefone tocaria hoje à noite, eu diria alô. Charles, Hélen.
Quero te ver! (Gosto de mulher objetiva). Eu ficaria em silêncio. Rita na sala. Charles, você ama de verdade
sua mulher? Eu diria que não sei. Charles, larga tudo e vem comigo! Vem pra
fazenda comigo. Eu te faço feliz, juro!
Esta noite eu não dormiria: largar tudo. Passaria a noite em
claro. Rita nunca teve outro homem, dorme de boca aberta. Eu em claro. De manhã
quando Rita acordasse, eu estaria sério. Ela fingiria não perceber. Mas eu
estaria triste e sério. O que você tem, Carlos? Eu olharia Rita no fundo dos
olhos e diria: Rita, eu vou deixar você.
Rita faria uma cena e eu faria as malas: pouca roupa. Rita
sofreria muito, mas depois se casaria com outro. Maria Helena, vou contigo!
Eu e Helena rumo ao desconhecido, viagem longa de ônibus. Quando
chegasse o destino, desceríamos e caminharíamos a pé. Trêmulos, nos olharíamos
em silêncio.
Hélen cada vez mais louca, cada vez mais ruiva, eu nunca iria
conhecê-la tanto quanto conheço a Rita. Eu teria um medo enorme de que ela me
deixasse. Hélen desejaria um filho e na fazenda eu ia tr orgulho de dar. Seria
criado lá, com as outras crianças, livres. Nunca amis contas, aluguel,
prestações, exploração, trânsitos, princípio de mês, fim de mês, sem fim.
A rua é uma sauna. Meu terno suado está gelado, úmido. Este
frescão vai me deixar gripado de novo. Atchim! A porra do lenço que a idiota da
Rita sempre esquece de colocar no bolso do meu paletó. Quanta gente bronzeada,
deu praia. Aquele carro cheio de malas, vão viajar, que inveja! Não, é placa de
Minas, estão chegando, felizaros. Minhas férias só vencem em maio.
Atravessar sinal verde e seguir, perder-me nas calçadas, dobrar
esquinas, os pés conhecem o caminho. Vejo a minha janela, pouca luz. Rita vê
tlevisão. Subo e entro em casa.
Rita vem me receber.
- Oi.
- Oi, Rita.
Tiro o paletó, a gravata, vou ao banheiro, lavo o rosto e as mãos
e me olho no espelho: cansado. Então eu sinto um gosto na língua e nos lábios e
entendo: um gosto de ter mergulhado depressa e na superfície por não atinar que
era a primeira e última vez. Um gosto azedo de instante.
Hélen, Hélen, último mergulho. Viro a torneira fria do chuveiro,
tomo um banho rápido, visto um roupão, abro a porta do banheiro e volto à sala.
Rita me esperou pra jantar. Rita pede pra Aparecida servir. Aparecida, pode
servir.
Sento. Rita senta. Desdobro o guardanapo, Rita desdobra o
guardanapo. Aparecida traz salada de batatas, alface, tomate e cenoura e suco
de laranja. Aparecida vai e volta trazendo bife com molho e tutu de feijão que
eu gosto. Vai e volta e traz arroz. Vai e volta e traz pão partido e manteiga.
Rita me serve, se serve, comemos. Rita me passa o suco. Carlos,
quer mais arroz? Rita come pouco. Cruzamos os talheres. Aparecida, pode tirar.
Aparecida leva o prato de salada, vai e vem e leva o resto do bife
com molho, vai e vem e leva o rsto de tutu de feijão que eu gosto. Aparecida
traz café. Rita põe suíta no meu, açúcar no dela, duas colheres, cinco gotas.
Duas colheres, cinco gotas, Hélen! Rita acende um cigarro pra mim
e outro pra ela. Fumamos. A expressão de rita é aérea, o pensamento voa? Dez
pras nove. Rita escova os dentes. Eu escovo os dentes. A escova da rita é
verde. A minha escova é amarela.
Visto a calça do pijama, está calor. Rita veste a camisola. Deito
e abro um livro. Rita desliga a televisão, deixa dinheiro trocado em cima do
fogão, tranca a porta da rua, abre a janela do quarto, fecha a persiana, liga o
ventilador, põe um terno claro em cima da cadeira e esquece o lenço. E deita.
Leio, não concentro e paro: vou deixar um cheque amanhã com a Rita
pra ela comprar o presente de casamento do Mauro. O pior são estas despesas que
a gente não prevê.
São dez e meia da noite agora, Hélen. Dez e meia, Helena!
Rita estremece dormindo, passo as mãos no seu cabelo, muito de
leve, quase sem tocar. Eu a observo durante muito tempo. Rita acorda, levanta e
sai do quarto, faz xixi de porta aberta, eu ouço, apaga a luz do banheiro,
fecha a porta do quarto e se deita, me diz boa noite, sorri e se cobre, vira de
bruços e dorme. Passo o braço ao redor do seu ombro e durmo.
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