Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

11. Cartas ao silêncio



Li, esta é a primeira parada longa, saiu o pesa da minha cabeça e estou nervoso como uma criança, sinto ânsias como se eu é que estivesse estático, petrificado, imóvel, e a paisagem e a estrada corressem vertiginosamente e passassem derramadar para trás, a saudade de você não me doi porque eu te sinto perto, materializada na minha angústia, incorporada respirando no meu pescoço, febril e suada como tantas vezes, eu te quero muito. O tempo é longo, interminável, e quanto mais eu me afasto, mais eu te sinto próxima.
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Você está bem, não está? Não quero te causar mais nenhum sofrimento, nunca, se seu pudesse tirava todas as coisas boas do mundo e entregava a você, despedir-me foi um terremoto, foi pegar todo esse tempo que passamos juntos e bater no liquidificador, e eu vim aflito e em calda, mas não pode ser o fim. É impossível. É o começo, é o recomeço. É alguma coisa, não é, Lígia?
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Passou o tempo do almoço e eu não almocei, pensei em você, escrevendo, sonhando, são tantas horas de viagem, pra onde? Se eu ao menos soubesse o que m eespera nesse lugar estranho. Li, não trouxe nenhuma fotografia tua, que besteria, eu queria ter trazido uma foto do teu rosto, bem grande. Mas não faz mal, eu o vejo, de olhos fechados, de olhos abertos, eu te vejo e se me arrancassem os olhos, ainda assim eu te veria. Lígia, não se perca de nós dois, do que nós somos, do que nos vivemos, não se perca neste tempo de ausência minha, eu te quero. Preciso te repetir que não estou fugindo, mas que eu precisava vir, ficar distante, afastar-me, não de você, mas da própria vida, e eu começo a me sentir afastado de mim, da confusão da minha cabeça, e assim cada vez mais você se aproxima, você se infiltra em mim, Li, um pouco mais fundo em cada volta do pneu que possui e abandona a estrada. Tenho fome, vou comer um sanduíche e comprar umas revistas, apesar de eu nunca ter conseguido ler em ônibus. Te amo.
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Ainda não desfiz minhas malas, há muito pouco tempo cheguei, o lugar é lindo, indiscutivelmente deserto, quilômetros e quilômetros verdes, montanhas, rios, cores, todas as cores, ceu literalmente azul, não há vizinhos por perto, não h[a barulho de carros, respira-se ar, a casa é mínima, de tijolos, não tem luz, água encanada, nada.
Moram seis pessoas: Seu Euzébio, Dona Anastácia, Celeste (filha deles), e três crianças. Celeste está esperando bebê, que deve nascer ainda este mês. Celeeste, de marido morto há cinco meses.
Todo o aperto do meu coração desapertou, eu me sinto leve, calmo. É a natureza, é o silêncio, é o riacho que corre bem aqui do lado (Vem pela casa um cheiro de café. Cheiro bom, diferente do café daí).
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Escrevo de novo, desta vez ao ar livre, estou sentado nas pedras do riacho que passa perto da casa, estou feliz, a água corre nos meus pés. Do outro lado, três mulheres lavam roupa e conversam, estão coradas e descabeladas, perto delas forma-se uma espuma branca, logo o rio limpa de novo.
Acordo sempre ao nascer do sol, acredita? Pintei a casa, ficou outra coisa, as crianças ficaram encantadas, são alegres, perdem-se pelos matos, tão soltas, tão livres.
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Desde que cheguei, não fiz a barba. Os mosquitos estão me devorando. Planteii uma trepadeira na porta da casa. Converso muito com Seu Euzébio, ele é quase cego, caminha distâncias enormes, sozinho. Estou tirando fotos de tudo e de todos, como se eu tentasse levar um pedaço daqui comigo, ou lhe dar um pedaço de mim em tudo.
E você, como tem sido sua vida? Como tem sido viver sozinha? Me fala dessa terra, escreve contando as novidades. E Paulinha, e todos? Nossos amigos têm indagado muito a você? Diga o que quiser, o que for melhor, o que não te aborreça.
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Seu rosto é o rosto de uma montanha enorme, às vezes aprece até que eu escuto sua voz. Você é muito importante para mim, Li, eu te amo muito, preciso que você exista.
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Lígia:
O tempo passa. São quase nove horas da noite e parece madrugada. É difícil escrever sem luz elétrica. As condições daqui são bem precárias, você não suportaria viver um dia nesta  casa, moça da cidade grande, do conforto, da água quente, dos perfumes, dos jantares. A cada momento que passa, fico mais afastado desse mundo seu, tenho até medo de regressar.
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Zilá e as crianças escrevem quase diariamente, percebo que ela está um pouco sem entender essas minhas “férias” solitárias. Era preciso, não era? Você está feliz, não está, Li? Como você está? Gostaria muito de receber notícias suas, muito mesmo. Por que você não escreveu ainda? Sei que escrever cartas não é o seu forte, mas faça um esforço desta vez. A trepadeira pegou, tomara que cresça muito antes de eu ter que voltar. Este pensamento me agonia, Li, não quero voltar. Estou fotografando tudo, mando os negativos.
Imagina que ontem eu me perdi no meio do mato, foi um vexame. Todos ficaram preocupados e Celeste me achou. O pior é que eu estava a alguns metros da casa.
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Li, deixei de fumar. Nem fiz esforço, não. Simplesmente eu me esqueço de fumar. Minhas unhas estão imundas. O silêncio é alucinante. Li, não deixa de escreve, não. Estou morrendo de sono. Um beijo.
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Estou morrendo de sono, mas não durmo. Penso em muitas coisas, é como se eu houvesse morrido para o mundo, o tempo está passando depressa, as coisas transcorrem em mim, iguaizinhas, não é, Li? Você já deve ter se acostumado com a minha ausência, tenho vontade de voltar, mas não volto, talvez eu tenha curiosidade de voltar, mais nada.
Eu, aqui, sozinho, fico quieto, mas é uma calma inerte, estou morto por dentro, apagado como se minha vida desde o início fosse um só erro gigantesto em todos estes anos. Eu devia ter nascido no meio destas montanhas, filho do Seu Euzébio, irmão da Celeste, eu não teria uma cabeça tão complicada. Meu peito traiçoeiro aperta de novo com medo da cidade não estar no mesmo lugar, e eu voltar para um vale de cimento deserto. Minha barba está enorme, e estou gordo. Sem o cigarro, e comendo muito. É insuportável pensar na cidade aglomerada, nos carros, no escritório, no dinheiro, é insuportável. Aflição, é o que sinto.
Li, fico pensando por que será que você não me escreve? Será que você se mudou? Você tinha dito que ficaria no apartamento até o fim do contrato, não é? Você tem recebido minhas cartas, Li? Não se mude, não. Este apartamento está barato, vai ser difícil encontrar outro igual.
Fico horas sentado na beira do riacho sem pensar, às vezes cantando, minha voz péssima, desafinada, aqui posso berrar que ninguém me ouve.
Não me canso de olhar a água, os pássaros, as formigas. Os mosquitos já não me incomodam. Pelo cheiro, conheço a vinda da chuva, pela cor do ceu sei se o dia será quente.
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Celeste teve um menino nascido em casa, e eu vendo o parto tudo é simples aqui. Vai ser dif´cil ir embora, é ruim pensar em voltar para o trabalho e para o trânsito, a família, a cidade, aos meus dias (sem você?), à vida. (E desta vez sem você, definitivamente sem você?). Não sei viver sem você, não sei.
Tanto tempo, não é? Às vezes fecho os olhos, vejo seu rosto. Nítido e próximo. Claramente. Quando abro, é tanta montanha que eu me assusto.
Meu Deus, escreve, Li, me escreve. Este silêncio me preocupa, menina. Escreva o que você quiser. Qualquer coisa. O seu silêncio é sufocante, minha necessidade de falar é asfixiante. Estou asfixiado. Li, a calma exterior é imensa e me invade, não me deixa explodir.
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Gosto destas pessoas daqui. Nenhum deles, nunca viu o mar. Nunca foram a um cinema, nada. São felizes.
Nossa despedida foi tão triste, foi tão triste ver você chorando, confesso que chorei também, sozinho. Este dia está tão longe, não? Parece que anos se passaram. Sofri muito nos primeiros dias, foi demais (Será que a decisão foi minha? Ou foi sua? Não sei mais). Estamos separados, isto é terrível. Doi em mim demais. Doi demais, menina. Complicamos a vida, esta nossa cabeça difícil. Enrolada, não é? Seria tão simples ficarmos juntos, sem questionar, sem intelectualizar. A gente se amava, não é, Li? Muito. Por que não conseugimos? Longe, parece fácil viver com você. Parece fácil voltar e recomeçar. Eu me esqueço das coisas ruins que passávamos, que sofríamos.
Seu Euzébio piorou da vista, ele é muito silencioso, mas de vez em quando conta muitas histórias, muitas, fala pausadamente, com uma tristeza muito grande, não me deixa ajudá-lo a andar, é orgulhoso. É tão ruim a velhice, a morte.
É tudo tão complicado, será que nós, tão jovens, vamos passar a vida separados e nos arrepender no dia em que estivermos velhos?
Escreve pra mim, Lígia, minha companheira de cada minuto neste lugar distante, em cada segundo você está do meu lado, eu te sinto mais que a mim próprio presente.
Meu amor, um abraço enorme, grande, que não desaperte, que não desabrace. Um beijo.
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Ontem foi batizado do menino da Celeste e ele recebeu meu nome. Estou dando aulas para as crianças da Celeste e mais uns vizinhos, moram a uns oito quilômetros daqui. Mesmo assim, sinto um vazio enorme por dentro, não sei o que falta, não sei. Tudo que acontece, tenho vontade de fotografar pra você ver. Foi tão bom vivermos juntos, não foi? Como é que as coisas acontecem e a gente não tem controle sobre elas. De repente, eis-me aqui, tão longe, tão só. O que aconteceu com a gente? O que estou fazendo aqui longe de você, o quê? Meu lugar é aí do seu lado. O que houve de errado? Onde erramos, onde?
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Lígia, a trepadeira já cobriu toda a frente da casa, está linda. Com o frio que tem feito, passo mais tempo dentro de casa. Lembra como achávamos bonito as pessoas de casaco na praia? Que saudades de nossa praia. Que saudades. Sempre que me banho no riacho (aqui não tem chuveiro, nem ducha, nem nada), penso no mar, fico achando o mar enorme. Acho que, de volta, eu terei medo de nadar. Lígia, Seu Euzébio perdeu definitivamente a vista. Ele fica tão quietinho, às vezes,  cantando baixinho. Passo horas ao lado dele, num silêncio muito nosso, muito triste, muito amigo. Ele não me faz perguntas, como se entendesse que estou perto e que estou triste, minha alma é apática, Lígia. Minha apatia é desesperada, é agonia e minha inércia é o horror e o medo, é o pavor de pensar. Lígica, não deixe o tempo passar, escreve uma carta. Escreve logo. Li, eu vou esperar tua carta. Muito.
Por que você não me escreve? Você foi embora? Você se mudou, Lígia? Não se mude, fique neste apartamento até acabar o contrato. Como é possível que você tenha mudado de ideia sobre o apartamento? E sem me escrever nada, todo este tempo.
Lígia, vai ser horrível se eu abrir a porta e não encontrar mais suas coisas. E se eu encontrar outras pessoas na sua casa? Vai ser deprimente.
Será que você não leu nenhuma carta, houve um desencontro? Será que você se mudou antes delas chegarem? Não, Lígia, não acredito. Pra onde você iria tão depressa?
Meus Deus, será que vou encontrar estas cartas amontoadas no chão perto da porta? Lígia, pede pro Ricardo me escrever, sem falta. O mais depressa possível. Pede, não esquece.
Um beijo em você. Não deixe de dar o recado ao Rick.
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Volto a escrevr. É tarde da noite. Um pensamento anda na minha cabeça. O tempo todo, não sei como não pensei nisso antes. Existe alguém, não é? Outro homem, existia já? Existia? Se existia, por que você não me disse? Há quanto tempo? Merda. Quem é ele? Eu tenho pelo menos o direito de saber o nome. Não acredito que você tenha ido morar com ele. Tão depressa. Não se precipite, conheça-o emlhor. Você sabe como é difícil a convivência a dois. Pode não existir ninguém, mas eu não paro de pensar. Não paro. Não é tanto mais em você, é no motivo pelo qual você nunca me escreveu. Você é uma inconsequente, sempre foi. Imatura e irresponsável. Egoísta e mimada. Egoísta, são três horas da manhã e estou feito um idiota tentando adivinhar coisas que você não me diz. Pede pro Ricardo me escrever, Lígia, esta é a última carta minha.
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Lígia:
Desisti de esperar notícias, o tempo passa numa velocidade absurda, todos estes dias esperei, todos eles, Lígia, todos quantos passaram, quantos, muitos, nem uma só palavra, por que você não me escreve, Lígia? Chego a pensar que você pode estar num hospital, sei lá. Isso me preocupa.
Se algum dia eu falei em esquecer, era conversa fiada, não quero que você me esqueçaç coisa nenhuma. Estas coisas, as pessoas se prometem, mas não cumprem, lógico. Ninguém pode se desligar assim simplesmente apagar alguém, desligar como se usássemos uma tomada. Nenhum rompimento pode er assim tão radical, tão repentino. Você não escreve e é pior, eu não paro de imaginar coisas.
Talvez você não esteja abrindo as cartas para pensar melhor. Ou não pensar.
Só não entendo entendo uma coisa. E a curiosidade, Lígia? Nossa, se as cartas estiverem fechadas, eu vou sentir uma vergonha imensa pela minha fraqueza. (Meu cabelo está enorme, estou ficandolouro, Lígia, de tanto sol). Como é que você pode não abrir as cartas? Lígia, você ficou louca? E se fosse um recado importante? O que é importante, agora?  Pra nós, o quê? Nada, Lígia, nada? Você quis ver até onde eu suportaria? Eu não suporto mais, quero você agora. Por que você não vem pra cá, hoje, imediatamente, você quis saber quanto tempo eu suportaria? Não suporto mais, largo as crianças, Zilá, tudo, juro, Lígia, desta vez, hoje. Escreve o mais rápido possível. Sou um imbecil. Lógico que você sabia muito bem que eu ia escrever assim que colocasse os pés fora do ônibus. Você me conhece muito, não é? Deve ter montado um esquema organizadíssimo para não ouvir notícias minhas, lógico. Você tem mania de pensar que você é quem sofre, aposto que defendeu-se toda, viajou, conheceu mil pessoas novas, você é tão descontrolada que é capaz de ter comprado roupas e móveis pra me esquecer, deve ter afugentado o amor do seu coração a qualquer custo. Só que quem paga este custo sou eu, aqui, palhaço, escrevendo feito um maluco. Pra quem? Pra quem? Será que alguém lê estas merdas destas cartas?
Você deve estar rindo da pilha que se forma na mesinha. Deve estar dizendo para as suas amigas: Olha as cartas do bicho do mato. Foi assim que você me chamou quando eu disse que vinha pra cá, não foi? Disse que eu ia fugir, não é? E você pode me dizer uma coisa: por acaso evitar-me não é uma fuga também, ou você se acha muito corajosa?
Que se dane, você. Eu ainda vou ficar aqui muito tempo, muito mais do que você pensa. Se tem sido ruim pra mim, com você não pode estar sendo diferente. Tomara que você esteja chorando lágrimas de sangue, tomara que um dia você se arrependa deste silêncio infantil e idiota. É sua vida, sua besta, que você está jogando fora. Eu te amava, sua tola, eu já não sei se te amo mais, entende? Você me confunde, mas eu não te amo.
Eu não te amo, Lígia. Nada.
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Lígia, sinto uma sensação horrível de vazio, aproxima-se o dia da volta. Sinto um gosto ruim na boca, que se parece com o café fraco lá do escritório.
Hoje é quinta-feira. Domingo minhas malas estarão prontas. Sinto um medo enorme, todo este tempo, nenhuma resposta sua, tenho calafrios no estômago quando penso na cidade em você, na família, nas pessoas. Quer que eu te diga uma coisa? Você nunca me respondeu, você é insensível, Lígia?
Eu não me conformo, será que você fingia, será que você nunca me amou de verdade? Eu não compreendo uma pessoa como você, nem quero compreender, nem quero me aproximar. Eu odeio a futilidade das coisas da cidade. Lígia, você nunca sofreu. Odeio a cidade, Lígia, você tm cara de automóvel. Você tem cheiro de gasolina.
Você usa roupas horríveis, se borroca tanto, que de manhã sua cara é manchada. Você é igaulzinho a um automóvel. Insensível, barulhenta. Você é uma máquina.
Você não é um ser humano. Seus perfumes são caríssimos. Lígia, tem gente morrendo de fome. Você sabe o que é berne, sabe? E manicure, o que é?
Eu devia estar louco de conviver tanto tempo com uma mulher impregnada de cosméticos como você, fútil, superficial, vaidosa, egocêntrica, fingida. Você é vazia, Lígia, é deserta. Oca. Eu estava doente de dormir com uma mulher de bijuterias como você. De pensar em deixar Zilá e meus filhos por você.
Lígia, você não se parece com nada daqui, você não se parece em nada comigo. Fresca. Fingida.
Eu queria que você me visse agora, que seus amigos educados me vissem. Roto, descabelado, gordo, barbado. Ando a pé, ajudo as crianças, ensino coisas boas a elas.
O que você já ensinou de bom a alguém? Por que você sempre teve nojo de lama, aflição de inseto? Lama é terra, sua idiota. Terra é vida.
Você nunca me escreveu porque deve estar se embelezando e comprando roupas novas para outras despedidas. Você vai morrer sozinha. Sem ninguém, sem amor. Ou com um amor fingido com o seu. Tomara que você seja bastante infeliz. Eu quero que você morra, quero que você se dane, que sofra, que aprenda a sofrer bastante.
Lígia, você é um monstro, eu tenho pena da Paulinha, muita pena. E tenho pena de você também. Só isso o que eu consigo sentir: PENA.
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Tive um pesadelo terrível. Estou suado. Celeste acordou e assustei o bebê. Acho que gritei, não sei. Sonhei com minhas cartas amontoadas numa pilha gigantesca que te sufocava. As cartas estavam sujas de sangue. Vi, com clareza, o revólver que compramos naquele acampamento, lembra? Nunca mais o vi, depois da mudança, nem pensei nele. Mas no sonho eu o vi, ao seu lado, com uma nitidez horripilante. Agora não adianta mais pedir que me escreva. É tarde demais. Pesadelo estúpido, tenho certeza que você está bem. Preciso me convencer que você sempre teve a cabeça fria, sempre, eu é que não enxergava. Agora enxergo. Por tua causa, a criança berra até agora, eu estou suado e fedendo e com frio.
Celeste trouxe um chá, e eu recusei, mal educado como uma criança de pirraça. Até isso você me fez fazer: tratar mal a Celeste. Você não vale as sandálias que ela usa. Merda. Pesadelos: foi isso que sobrou do nosso “amor”, pesadelos, só.
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Zilá viu você na rua. Morta, você não está, nem doente. Você me esqueceu como se eu fosse uma palavra difícil, esta é a verdade.
Junto a esta, vou colocar uma carta pra Zilá no correio, onde peço a ela que se comunique com o Ricardo, com Iracema, com alguém que te conheça. Que se dane você e seus preconceitos. Se for preciso, escrevo até pra tua mãe. Não me importa nada
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Li, marquei a viagem de volta umas cinco vezes, depois desmarco, cancelo. Isto que você tem feito comigo é desumano. Não custava nada, pelo menos mandar notícias por alguém, por um telegrama, um bilhete que fosse.
Lígia, eu tive pesadelos, pensando que você tinha morrido. Cheguei a desejar que você tivesse orrido, quando Zilá escreveu que t viu, senti cólicas de tanto ódio de você. Às vezes penso que criei uma mulher na minha cabeça que nunca existiu. A Lígia que eu amei jamais faria isso, jamais ignoraria o sofrimento de alguém, como você tem feito comigo. Mas eu sou tão estúpido, que continuo fotografando todo galho de árvore que aparece na minha frente, como se algum dia você fosse tr pelo menos paciência de olhar.
Lígia, quando eu voltar, vou armar um escândalo, vou acabar com sua pose, vou mostrr a todo mundo quem você é. Lígia, você é uma vaca.
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Lígia, Ricardo me escreveu. Acho que vocês enlouqueceram aí todos, ele não escreveu uma só vez o seu nome, será que ele pensa que eu sou idiota? Será que é tão imbecil que achou que eu estava morrendo de saudades da caligrafia dele? Onde essa gente anda com a cabeça? Vocês estão tontos? Zilá só escreve falando sobre o analista que ela arranjou. Diz que agora está “me compreendendo”. Não toca no nome das crianças, como se não existissem, como se ela fosse o centro de alguma coisa, como se a análise dela me interessasse. Estou cagando pros problemas existenciais da Zilá. O que ela tem é dor de corno, isto médico não cura, não.
As cartas das crianças são raras e pequenas. Foram diminuindo, qualquer dia eles vão escrever uma sílaba por semana. Criança é assim mesmo, esquece tudo. Criança e adulto insensível como você.
Zilá, pelo contrário. Suas cartas são cada vez maiores, acho que ela não faz outra coisa na vida, vai ao analista e me conta as conversas, umas conversas inúteis, só ela mesmo pode dar dinheiro pra conversar com alguém.
Tudo que ela diz que desabafa com ele, eu sempre desabafei com você, na época que você era gente. É, mas antes eu tivesse pago um analista, não estaria aqui, agora, sobresssaltando minhas horas de sono com você.
Zilá está louca. Ricardo está louco, você está louca, e eu vou ficar por aqui mesmo, por muito tempo. Não tenho nada pra fazer aí, nesse manicômio.
Estou mandando esta carta pelo Ricardo para que ele entregue a você, EM MÃOS. Nem sei, Lígia, se começo a lhe dizer tudo de novo ou se lhe odeio. Estou desesperado.
Lígia, segunda-feira próxima estarei, a partir das cinco horas, na telefônica, vou esperar toda a noite uma chamada sua, se for preciso. Custe o que custar, telefone. Vou pedir à telefonista que desocupe as linhas. A qualquer hora, Lígia, eu aguardo. Escrevi milhões de cartas pra você, cartas grandes, cheias de amor, eu não sei o que houve com elas. O que temhavido, o que está havendo por aí, não sei. Eu vou esperar todos os minutos que me separam da segunda-feira, segundo por segundo, até ouvir sua voz.
Lígia, a cidade ica a duas horas daqui, eu vou esperar pela sua chamada. Preciso ouvir sua voz, Li.
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Faz muito tempo, Lígia, que não te escrevo. Que tempo foi esse que passou? E que dias, e que noites foram estas que correram? Eu me sinto velho, cansado. Pensei que fosse ficar aqui pra sempre, mas não consigo. Meu corpo está diferente, meu modo de andar, de falar.
Tenho liberdade de chamar a atenção dos meninos. Eles me respeitam, e me ouvem. Muitas vezes, Celeste me pede que converse com eles sobre as coisas, porque sou mais “instruído”. Sabe, eu tenho tanta coisa pra dizer, pra contar, tanta. Mas, será que você vai ler, Lígia? Alguém alguma vez leu essas cartas? Lígia, você leu alguma? Uma? Duas? Quantas, quais, estavam maçantes? Você não tem mais assunto pra mim, é isso? Escreve, porra! Escreve, por favor. Li, mesmo que seja pra dizer alguma coisa ruim, escreve. Eu não aguento mais. Você vai escrever, Lígia? Quando? Escreve hoje, sem falta, pelo amor de Deus, Lígia, uma frase. Lígia, eu não estou brincando, eu estou desesperado. Será que foi mentira da Zilá, quenão viu você na rua droga nenhuma?  Será que te aconteceu alguma coisa, e ela inventou isto pra me tranquilizar, será possível? Por que o Ricardo nem tocou no seu nome?
Lígia, teu nome.
Lígia, teu rosto.
Lígia, teu cabelo.
Lígia, teus olhos, como são?
Tua voz, Lígia, esqueci como é tua voz. Teus movimentos, o riso. As mãos. A testa. Teu pé. Teu braço.
Será que você morreu? Meu Deus, Li, você morreu? Li, me escreve, só pra dizer que está viva. Por favor.
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Lígia:
Sinceramente, gostaria que tudo estivesse correndo bem com você. Aqui, tudo na mesma, continuo dando aulas, enho trabalhado na lavoura. É impressionante, mas o que nos precisamos (realemnte) para viver (sobreviver), a terra nos dá, o resto foi todo inventado por homens insatisfeitos. Cheguei a propor a Zilá que ela viesse com as crianças. Achou que eu tinha enlouquecido e me aconselhou a fazer análise. Estou tão feio, Lígia.
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Você teve razão em não me escreer. Nesses últimos meses fiz o possível para não pensar em você. Ocupei-me a maior parte do tempo que pude. Nunca mais fiquei com ruminações estéreis à beira do riacho. Vivi o presente. Aos poucos, não tive vontade de te escrever. Assim deixei de fumar, lembra? Sem perceber. Tenho vontade de te ver, sim, mas sem nenhum sofrimento, sem nenhum drama, para conversarmos sobre coisas atuais, da nossa vida nova. Uma curiosidade sem tamanho de ver seu rosto. Minha memória desapareceu com teu rosto, embaçou, não tem mais a nitidez que antes tinha. Nada como o tempo e o afastamento físico para matar os sentimentos. Porém, continuo seu amigo, sempre.
Deus me livre se algum dia te acontecesse alguma coisa, seu seria o primeiro a estar a seu lado. A angústia que às vezes sinto é uma angústia da vida, não tem nada a ver com você. Por favor, rasgue as minhas cartas, coisas escritas são tão ruins, marcam as sensações de um momento. Tanta coisa aconteceu depois. Tenho medo que você guarde uma impressão ruim minha.
Dentro de um mês mais ou menos devo estar de volta. Fiquei muito mais tempo do que o previsto. Sinto saudades das crianças, também, antes eu não sentia, evitava pensar neles. Vou recomeçar minha vida, Lígia, como um adulto, sem esperar paixões, grandes emoções e romances. A felicidade está nas coisas doces, certas, no amor que se constroi, no dia a dia. A felicidade está nos pequenos momentos, os mais simples. Aprendi a ser feliz aqui. Ainda não é tarde demais. Ainda tenho tempo, muito tempo.
Fisicamente, eu me confundo com as pessoas do lugar. Meu casaco está roto, velho. Meu casaco que era novo, ando com ele no mato. Eu tenho um cheiro de suor, de barro. Chato falar destas coisas. Acho que esse é o cheiro de gente, sabia? Minha barba alcança o estômago. Se você achar que já é tempo de escrever, escrva. Seria bom, agora, teríamos coisas boas a nos contar. Caso contrário, em um mês estarei aí nesta cidade de volta. Um beijo muito grande pra você. Cuide-se.
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Que destino terá esta carta, que destino tiveram as outras, com que olhos de ler será que eu converso meus dedos viciados, que mãos desdobrarão esta folha, para onde vão minhas palavras, minhas palavras verdadeiras, ditas nesta terra de estrangeiros, de pessoas verdes como as folhas, onde sou eu o único, ondesou eu o imperfeito, onde sou eu o de uma cidade grande, o que veio com cheiro de asfalto salgar este chão fértil com lágrimas e amargurar este riacho que corre tão doce, que destino terá esta carta, que destino terei eu, amanhã, depois de amanhã, depois.
A natureza está morta ao meu lado, Lígia, existe para qeu eu amorteça esta saudade de pedra, minha viida tem sido um tombo gigantesco, e vim parar aqui, absorto, compenetrdo, inerte, não adianta nada, Lígia, a eletricidade me faz repulsa, o barro do rio se infiltrou em mim. Lígia, estou descolorido, falso, absorvido pela grama alegre onde deixei cair o barco à vela que sonhávamos, o que ilumina agora é uma lua descaradamente branca que se escondeu das chaminés e veio se despir para mim.
Por que eu não volto, Lígia, se o tempo está esgotado, terrivelmente esgotado, e para me vingar de ti, surda, imóvel, impassível monstro de carne, as cartas de Zilá e de meus filhos se amontoam no chão de terra batida e seu não as abro, eu não ouço suas vozes esferográficas repetidas.
A verdade, Lígia, é que você nunca esteve disposta a me seguir, era um blefe, era uma mania de deixar passar o tempo. A verdade, Lígia, é que você nunca esteve, de fato. Seu amor era comedido e ajuizado, e você nunca esteve disposta a me seguir. Foge, sim, Lígia, não me responde, é muito fácil virar o rosto e não ver, não é, Lígia? Mas estas coisas doem, doem demais, machucam sem a gente sentir. Quando retornamos a desvirar o rosto, a vida é uma chaga só, irrecuperável.
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Lígia:
Hoje é segunda-feira. Agora estou na estrada sentado numa pedra, na sombra. Espero o ônibus para voltar. O silêncio é magestoso, é incrível. Parece que a caneta faz barulho enquanto o sol está se pondo, vermelhão, enorme, soberbo. Estarei de volta. A despedida foi horrível, muitas lágrimas (sinceras), eu já fazia parte deles. Tenho vontade de chorar e não choro.
As nuvens são rosas, vermelhas, lindas. À minha esquerda existe um morro íngreme com uma vaca pastando tranquila. Não sei como a vaca não cai, Li, a terra dos lados é quase vertical e a vaca se equilibra, é impressionante.
Venta muito, você detestaria estar aqui, neste sol e nesta poeira. A letra está ruim, pois estou escrevendo sobre a mala, desajeitadamente. Fiz a barba, minha pele está fina e branca, estou esquisito, não me sinto eu. É difícil explicar isto a você, que sempre me viu sem barba.
Daqui, posso ver um pedaço do atalho que leva ao riacho. Conheço-o tão bem, agora, sei que lá adiante é ladeira e o caminho de repente se cobre de pedras e estreita, depois alarga novamente e existem flores no meio do mato, e de lá já se ouve o barulho do riacho, mas ainda não se vê. Uns vinte metros depois o vemos, sempre correndo do memo modo.
Mas eu não vou mais nesse riacho, não é? Nunca mais, saudades de tudo. De você, do Seu Euzébio, Celeste, das lavadeiras, da trepadeira que plantei. Saudades do mar.
Você não sabe o que estou vendo na grama perto do meu pé, Li: um beija-flor. Ele está morto. Agora, eu o tenho na plama da minha mão. Ele é pequeno, colorido, tão delicado, tão frágil. Nunca antes tinha visto um beija-flor assim tão de perto, nem tocado nele. É macio, é molinho, belo. Está inteirinho, perfeito, de que terá morrido? Será que era velho? Queria fotografá-lo para que você visse (é tão estranho não ter barba, não consigo parar de procurá-la com os dedos, sinto-me outra pessoa). Lígia, estou ouvindo o barulho do ônibus, lá longe. Muito longe ainda, e eu sinto uma ânsia no peito, no estômago, não sei se quero voltar.
Vem vindo ele, vou ouvir a mudança de marcha quando chegar a subida, ele vai descer fazendo menos barulho, então depois da curva, a reta onde me encontro.
Esqueci completamente teu rosto, Lígia, completamente. Esqueci meu rosto, sem barba. Tento me imaginar e não consigo. Não me via no espelho há muito tempo, de corpo inteiro, nunca mais me vi. Já posso ver o ônibus, ele vai aumentar na minha frente, aproximando-se, e eu não vou chamar o ônibus, e não vou fazer sinal.
Passou. Passou por mim e está de costas, diminuindo e distanciando-se, roncando um ronco de lataria, o som atenua, o ônibus desapareceu nesta reta.
Eu não vou mais voltar, não fui neste ônibus sem irei em nenhum outro. Pra você, nunca mais. Nem pra cidade, nem pra ninguém.
Sabe, Li, eu estou sufocado, eu estou chorando, eu estou soluçando, eu não quero voltar pra casa do Seu Euzébio, entende isso, Lígia?  Não, você não entende nada.
Se você me escrevesse,  o que teria dito? Alguma bobagem, com certeza. Você sempre foi fútil, sempre, acho que sempre foi, não me lembro mais, Lígia, eu não vou voltar nunca mais. Vou caminhar pelo caminho de onde veio o ônibus.
Vou vendo as flores da estrada, vou sozinho, vou devagar, não sei onde vou.
O sol já se pôs, mas ainda não é noite, faz um frio grande, o ar é gelado, meu rosto e minhas mãos estão gelados, são as únicas partes do meu corpo que estão descobertas.

Vou pegar uma carona em sentido oposto. Que passe um carro, um caminhão, um cachorro vagabundo, uma carroça, um ônibus, um cavalo que me leve na direção contrária ao meu destino.

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