Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

12. A denúncia




       ...ela disse e então os dois se olharam em seus olhos velhos de gelatina, por entre os cílios e as sobrancelhas brancas, ele tossiu roncado do fundo do peito e deu um gole no café fraco que estava entre eles esfriando na mesa.
       O olho dela não descia, ele perguntou:
       - Você não vê outro jeito? – sem mirá-la. Ela disse não e levantou-se, tirando as xícaras da mesa. Ele disse, esfregando a palma da mão no joelho aflito: se pedíssemos ajuda a alguém... Ela sentou-se na poltrona surrada, recostou a cabeça e não disse nada.
       Ele soluçou porque estava velho.
      
Os móveis enfileirados ocupavam quase todo o espaço da sala, naquele apego que não os deixara desfazer-se de nada, em todas as mudanças, até aquele último e menor abrigo, aquele apartamento barulhento e pequeno. Um retrato emoldurado na cristaleira, uma imagem de Cristo pendurada perto da porta.

... depois ele se envergonhou de soluçar e ela cochilou porque estava velha recostada na poltrona. E ele se levantou trêmulo de velhice e injustiça e, sem ruído, alcançou o retrato. Se Carlinhos estivesse perto... se ele voltasse...

É verdade que ele trabalhou a vida inteira, honesto e medíocre, remediado e homem de bem. É verdade que ela é uma santa. Que Deus não poderia abandoná-los neste momento. Para um asilo público, mansos como os bois, não. Eles não querem esperar a morte ao lado de velhos esclerosados. Não. Eles estão lúcidos.

Lurdes, aquela que havia sido recebida comi filha, acendeu um cigarro no outro e cruzou as pernas, pensando nos velhos. Há muito tempo não os visitava, há muito tempo queria-os iludidos. De que valeria mostrar-lhes a pele estragada, o fígado estragado, o estômago vazio. Melhor que pensassem nela como uma mulher ingrata, mais nada. Lurdes não dormiu e saiu pelas ruas na noite suada e nervosa. Acendeu um cigarro no outro, sem vontade de dormir... aquele lugar cheio de gente, pobres e amontoados, aquele inferno de miséria, fome e solidão.
Lurdes andou depressa como quem foge, mas havia um bar em cada esquina, implacável. A madrugada ainda a encontraria assim. Até que no último bar aberto, o primeiro gole. E bem sabia que... nunca o primeiro gole.

... o velho recortava jornais e fazia contas. O velho racionava açúcar e anotava as compras. Assim estava, sentado à mesa rodeado de papeis, olhos poídos de olhar, quando a velha chegou da rua. A velha parecia mais velha, parecia mais morta, mais enrugada no seu rosto de moldura branca.
Ele temeu perguntar, já sabia a resposta.
- Consegui falar com um advogado, ela disse. Não tem jeito.
Ele temeu entender, continuou trêmulo rabiscando números.
Então ela foi até ele, tirou-lhe os óculos e afagou-lhe os raros cabelos, e disse: já fiz as contas, não tem jeito. Então ele empurrou-lhe as mãos sem força e recolocou os óculos, como se não ouvisse e perguntou: você falou com o dono do apartamento?
Então ela disse que sim e pronunciou a palavra despejo. Ela sorriu amarga de velhice e repetiu: despejo, despejo, despejo. Ela foi parando de sorrir e dizendo: despejo, despejo, despejo, e foi começando a chorar e repetindo despejo, despejo, despejo, despejo.

Que seja o que for, mas que seja de uma maneira honrada. Que não desmorone o derradeiro esforço de dignidade. Que quem viveu como um homem não morra como um asno. Que quem trabalhou e aposentou correto não morra como um cão. Que para intimidar e envergonhar bastem os corpos velhos, a memória fraca, a pouca resistência física, a morte indiscutivelmente próxima, a falta de tempo e de esperança, o medo velho de perder o outro. Que para envergonhar bastem os engasgos, os tremores, a senilidade, essa fragilidade velha.
Então
Que haja uma solução.
Que seja o que for, mas que seja de uma maneira digna.

... e ele olhava o retrato. Nem Carlinhos, nem Lurdes, mais nada. Nem o menino que eles viram crescer, o menino estudioso, o menino barbado e excêntrico, nem Lurdes, sabe Deus onde aqueles que lhes amansaram as vidas e que agora, no momento drástico de injustiça e pobreza, sabe Deus onde, Carlinhos e seus amigos e seus livros, que traziam tanto barulho e vida para aquelas quatro paredes. Se houvesse tempo... se Carlinhos voltasse...
O velho relembrou incontáveis dias e noites em que esperavam Carlinhos, que procuravam Lurdes. Depois veio o tempo do silêncio, quando não quis mais lembrar, nem esperar.
Agora o velho vai do retrato à janela, da janela ao retrato, esfregando as pontas dos dedos no joelho aflito e de novo eles se olharam em seus olhos idosos de gelatina. Ele pegou o retrato nas mãos desenhadas por veias azuis e disse:
- Se Carlinhos voltasse... se nós...
Ela levantou-se brusca e velha e dirigiu-se para o quarto e ele não a viu chorar, e antes de bater a porta com força , ela gritou, dando-lhe as costas:
- Carlinhos está morto!

É verdade que vocês não tiveram filhos, embora tenham desejado, naquele tempo antigo, é verdade que vocês acolheram Lurdes e o menino, e eles povoaram a casa, até que o menino cresceu e estudou, é verdade que ele teve que trabalhar pra isso, que o dinheiro era pouco, que Lurdes também trabalhou. Sim, vocês quatro acolheram-se em mansa e morna família, e Lurdes ocupou o lugar vazio de filha no coração de vocês.
É verdade que Lurdes bebia, que maltratava o menino, é verdade que sóbria o amava, que vocês internaram Lurdes três vezes, que ela foi para a clínica espontaneamente, que vocês e ela rezavam juntos para que ela vencesse o vício, e que ela não vencia, que as clínicas não passaram de um descanso para o corpo e a mente gastos dela. É também verdade que os médicos eram alheios e indiferentes, que lá os outros eram loucos e eram horríveis, que Lurdes não era louca, tinha medo e bebia.
É triste lembrar que Lurdes foi embora porque queria, quando o menino se fez homem, mas que os visitava sempre, embriagada. Que veio cada vez menos e que se dizia curada, e que depois desapareceu, a ingrata.

De novo aquele cheiro de velhice e café fraco em volta da mesa, aquele cheiro de injustiça e de morte. De novo a dentadura frouxa, a respiração difícil, o envelope fechado sobre a mesa, o ridículo medo da morte depois dos noventa anos, quando a morte já se instalou no corpo sorrateiramente, quando o futuro é só um piorar e adoecer, e curvar e enrugar e morrer aos pouquinhos. Ridículo amor à vida.

Foi há muitos anos. Lurdes havia desaparecido há algum tempo. Carlinhos veio da faculdade e trouxe pão doce e leite para lancharem, como sempre fazia. Trazia uma caixa enorme e guardou-a embaixo do sofá da sala, onde dormia. Eram livros que guardava para um amigo, disse. No outro dia, outra caia. Mais livros do mesmo amigo, mentia. As caixas iam ficando embaixo do sofá, que ninguém mexa nelas, e ninguém mexia.
Num domingo a porta foi arrombada. Policiais à paisana empurraram os velhos de encontro à parede e perguntaram por Carlinhos. Não estava. Reviraram o apartamento e quebraram coisas. Encontraram as caixas e abriram: panfletos e armas. Apagaram as luzes e agacharam-se todos. Quando Carlinhos enfiou a chave na porta, a velha quis gritar, mas eles foram mais rápidos: abriram a porta e esmurraram, algemaram e levaram Carlinhos.
Em nenhuma delegacia, em nenhum hospital, em nenhuma prisão, em nenhum lugar mais, nunca mais.

Lurdes sentou-se no colchonete, irritada. Dor no estômago e vômito, passou lentamente pelos colchões enfileirados, e no espelho do banheiro viu seu rosto amarelo e murcho, o hálito azedo de dia seguinte. Quis chorar mas não pôde, carregaria sua cruz de morrer aos goles, com fome e solidão. Que apodrecesse viva e doente, que levasse isto até o fim, que os sangramentos diziam estar próximo.
Lurdes sorriu porque tremia e doía e definhava, mas não atrapalhava ninguém, era como se fosse um bicho, mas não era um bicho porque valia a pena deixar-se morrer aos pouquinhos, escondida dos outros , morando entre esse gente miserável de merda que nem se importa, valia a pena deixar-se destruir, porque não atrapalhava ninguém e porque não tinha cura, sabia que não tinha cura, ia beber até morrer, medrosa e doente, pelo menos ia morrer como um elefante velho, sem atrapalhar a vida de ninguém, sem envergonhar, valia a pena porque sua vida não valia nada e porque seu filho agora devia ser doutor.

Levaram uma vida quieta, pacata, tudo nos seus devidos lugares, sempre. Tudo. Ele, um homem de bem. Ela, uma santa.Sessenta e quatro anos de casamento, de obediência, de aquiescência, de dever cumprido. Sessenta e quatro anos pontuais, pobres, organizados. Agora que a vida se vai por um fio, o primeiro e derradeiro grito, a primeira e última e definitiva irreverência. Ela levantou os velhos olhos e sorriu. Então ele também sorriu seu acordo tácito, seu primeiro e delicioso e último sabor de pecado e desobediência.
Não. Não iriam implorar nem mendigar nem acabar sem teto e velhos com fome, súplices. Não. Não iriam perder na hora da morte a decência e a dignidade que construíram ao longo de tantas dezenas de anos pobres e honestos. Ela sorriu e ele sorriu, um sorriso velho e manso de raiva. Que tudo servisse pra alguma coisa.
Ela fechou as janelas do apartamento com seu jeito lento de velha, empurrou jornais antigos por baixo da porta, ele fechou os olhos fingindo que dormia quando ela se dirigiu ao fogão da cozinha, e enquanto o gás se espalhava devagar pelo apartamento, ela abriu trêmula um frasco de comprimidos. Encheu dois copos com água, caminhou com firmeza até o marido, e afagou-lhe a testa suada. Ele abriu os olhos poídos de olhar, estendeu a mão e tomou os comprimidos com água enquanto ela fazia o mesmo. Deram-se as mãos com força. Ele fechou os olhos de novo, contendo-se, mas deixou escapar um soluço. Ela sentou-se a seus pés, num jeito velho e amigo de decisão e cansaço. Pegou papel e caneta na mesinha, e rascunhou:
A quem interessar possa:

Na manhã seguinte, o Jornal do Brasil noticiou:

“Denúncia vazia leva casal de velhos à morte”

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