Livre divulgação, desde que citada a autoria.

domingo, 23 de agosto de 2009

O grande adeus

Está tudo terminado – disse ela – não adianta mais. E começou a fazer as malas lentamente, peça por peça, como se há muito tempo soubesse que nesse dia iria embora e como se tivesse para onde ir.
- Para onde você vai? – perguntou ele com fingida ironia. Para a casa da mamãe?

Ela começou a chorar em silêncio enquanto dobrava as roupas. A mãe dela estava morta.
- Para onde você vai? – insistiu ele, dessa vez sem ironia.
- Não sei.
E ela continuou a encher malas e sacolas de roupas como se soubesse.
- Você está precipitando – afirmou ele, tolerante como se falasse a uma criança.
- Pensei durante quarenta anos – disse e enfileirou as malas junto à porta.
Ele cortou as unhas acompanhando todos os movimentos dela co o rabo do olho. Ela foi para a cozinha e lavou toda a louça do almoço como se não fosse embora, preparou o jantar como se jantasse com ele esta noite, regou as plantas como se fosse morar lá para o resto da vida.

Ele cochilou na poltrona velha e a tesoura pequena caiu no chão. Ela pegou e guardou no armário do banheiro. Tirou as roupas do varal, as que estavam secas, e passou a ferro todas. Separou as roupas de mulher e fez mais um embrulho que colocou junto às malas. No armário que foi dela, vazio, guardou roupas de homem. Ele acordou sobressaltado e procurou por ela pela casa grande.

Ela estava fazendo tranças nos cabelos ralos e longos em frente ao espelho do banheiro, de porta aberta. Ele entrou lá, disfarçou e urinou, enquanto ela se penteava.
- Vai anoitecer – disse ele enquanto se abotoava.
- Que anoiteça – ela resmungou tão baixinho que ele nem ouviu.
No quarto, ela tirou o avental e calçou os sapatos, limpou os óculos na barra do vestido e os colocou de novo. Não chorava. Tinha os olhos e a boca secos. Ele voltou a sentar-se no sofá da sala, depois levantou-se e ficou procurando a tesoura.

- Você viu a tesoura? – perguntou.
- Caiu no chão quando você dormia. Guardei no lugar de sempre.
- Qual é o lugar de sempre?
- O armário do banheiro.
Ele foi até lá e não encontrou.
- Droga! – Disse ele imitando raiva.
- Na parte de cima – disse ela – junto do aparelho de barba.
Ele achou e sentou-se de novo no sofá e as unhas já estavam bem curtas. Ela ligou a televisão e sentou-se ao seu lado. Pregou botão nas camisas velhas dele, enquanto assistia algum programa de domingo. Ele se levantou, deixou a tesoura de qualquer jeito sobre a mesa para implicar pela última vez, e pegou o jornal, que já havia relido mil vezes, no fim-de-semana.
Ficou relendo, enquanto ela costurava de olhos grudados no vídeo.

- Preciso de algum dinheiro – ela disse quando o programa acabou, guardando as camisas.
- Pega na gaveta – respondeu – tenho muito pouco. Hoje é domingo.
- ...
- Se você quiser, amanhã assim que abrir o banco, eu...
- Não é preciso – interrompeu – qualquer coisa serve.
Ela voltou do quarto com um dinheiro dobrado e enfiou no bolso do vestido.
Ele continuou relendo o jornal, ou fingindo que relia.
- Bem – disse ela – já vou
E ficou parada no meio da sala.

Ele se levantou rapidamente, deixou os jornais caírem no chão de qualquer jeito e ficaram de pé um em frente ao outro, sérios, solenes como dois soldados.
- Me ajuda com as malas – ela pediu e eles desceram a escadaria carregados.
No portão da rua eles se abraçaram entre os embrulhos e os pacotes e se beijaram na boca, com força, desajeitadamente. Ela desvencilhou-se depois de algum tempo, pendurou as sacolas de alça no ombro, segurou com as mãos as malas e os pacotes e se foi.

Ele ficou no portão ouvindo o barulho do vento misturando com o plec-plec do sapato dela e ficou vendo aquela mulher magra e curvada, a sua, afastar-se cheia de malas, andando devagar e com dificuldade, parando de vez em quando e trocando os volumes de mão por causa do peso. Começava a anoitecer.

Demorou muito tempo até que ela dobrasse a esquina e ele a perdesse de vista para sempre.
Então ele ficou só ouvindo o barulho do vento.

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