Livre divulgação, desde que citada a autoria.

segunda-feira, 22 de agosto de 2005

Marido que merece

Regina Célia detesta ser igual a todo o mundo. Mesmo sendo reveillon e festa à fantasia. Regina Célia se veste completamente de vermelho, inclusive as unhas. Inspirada no esmalte de Catherine Deneuve no filme Le Dernierre Metro, que viu recentemente. E também em melancias.

Regina Célia fala sozinha, dá conselhos a si mesma, o seguinte: Pense que é um dia igual a qualquer outro.
Regina Célia se previne para não ficar deprimida. Pra não correr esses perigos. O tempo passando, o ano dois mil, o futuro chegando de vez e nada de roupa branca. Convenções, bah! Um uisquinho para espantar saudades de mãe, pai, ex-amantes e outras mortes.

Sandália sem salto pois vai ter que andar a pé, pisar na areia à meia-noite, dançar e ficar mais baixa que os rapazes. Solteiríssima, Regina Célia vai pra festa carnavalesca pensando simplesmente em evitar a melancolia, mudar de ano e se divertir.

Os donos da casa são gays, a maioria dos convidados é gay, o mundo é gay. Regina Célia não é gay mas anda tão encalhada que esta noite é até capaz de arranjar uma gatinha.
Apartamento incrementadíssimo, luzinhas chinesas de Natal piscando, confetes grandes dourados espalhados pelo chão, serpentinas penduradas, máscaras nas paredes, bebida e comida a valer, Regina Célia se esquece da vida e cai na fuzarca. Bailes gays são animadérrimos.

O destaque da noite é uma cigana bem decotada e completamente doida que levanta a saia dançando, balança a língua a um centímetro da cara dos rapazes, rebola, revira os olhos faz boca de boquete.
Destaque também para a empregada do dono da casa que, de roupa branca e cabelo preso, é a única que não perde a pose e nem a compostura, mantém o paraíso limpo e a pia seca enquanto os endiabrados, fantasiados se enlouquecem.

O cara mais alto da festa e o mais bonito, um barbudo, faz evoluções tipo samba no pé, mas sempre de cara séria. Está fantasiado de anjo caído (asas e esparadrapo). Regina Célia pensa que ele é gringo mas gringo mesmo é o amigo dele, alemão e animado, fantasiado de índio. Todos dançam, depois dançam de novo e tornam a dançar. Fazem uma rodinha. Por via das dúvidas, Regina Célia procura a tenção igual para os dois.

Todos os convidados começam a entortar. O alemão circula enrolando a língua pra treinar o português. E não é que o anjo quer dançar com ela de rosto colado? Regina Célia cola o rosto falando ao mesmo tempo mas sem perder de vista o alemão. E isso é fácil por causa do cocar.

Os grandes confetes dourados espalhados saem do chão e enfeitam as testas, ombros, costas, colos dos convidados suados. Sem para de dançar, catam as rodelas brilhantes do chão de estrelas e grudam pelo corpo. Regina Célia parece um céu estrelado, pintada de confetões. O Anjo passa a mão boba nas costas dela, por baixo da blusa mas Regina Célia continua falando como se nada estivesse acontecendo.

No sétimo uísque Regina Célia desiste de tentar parar de falar. Repete o mesmo mote: quer fotografar os ambulantes na praia, vendedores e vendedoras de todas as idades e em todos os trajes, quer gravar seus mantras tipo olhumati olhumati olhumati olhumati, cerveja geladinha e guaraprus, cerveja geladinha e guaraprus, saaanduíchenatural, saaanduíchenatural, aaaaaabacaxi, aaaaaabacaxi, aaaaaabacaxi, cocacolamate cervejaooolhaaagua cocacolamate cervejaooolhaaagua, óóóucoco óóóucoco óóóucoco, e expor as fotografias com esse fundo musical.

Regina Célia nem é fotógrafa, está completamente de porre e cismou com essa idéia. O grandão – que não é tão grande assim e parece abandonado pelo gringo – quer continuar dançando sério e calado de rosto colado mas não consegue pois não há meio de Regina Célia calar a sua boca.

Exaustos, suados e sedentos, Regina Célia e o Anjo Caído vão para a cozinha beber água, muita água. De repente e não mais que de repente ele puxa Regina Célia pela cintura para dentro do quarto de empregada e agarra Regina Célia. Só assim Regina Célia se cala e adora. Em seguida a empregada baiana tenta empurrar a porta mas Regina Célia é mais rápida e, mesmo trêbada, impede com o pé.

- Parece que tem alguém aí, explicita a empregada.
- Fala! – Ordena baixinho o Anjo, mesmo caído. E sem interromper as funções.
- Tem! – Regina Célia diz, firme e atarantada. E sem largar as asas dele.
- Então não vou atrapalhar, concluiu a empregada, baiana, sóbria e educada, afastando-se.

Sem diafragma, pílula ou camisinha, Regina Célia cria outras soluções para dar vazão a tal furor pois não está pensando em ter bebê de um gay altíssimo, fantasiado e gostoséssimo do qual nem sabe o nome, doida numa festa carnavalesca de ano novo.

Descabelada, sem batom, amassada, com tiras de esparadrapo e penas coladas no suor do pescoço e olhar arregalado de quem acabou de cometer uma loucura, Regina Célia sai primeiro e segue para a direita com passos de robô. Ele sai depois e segue para a esquerda de asa partida. O alemão está dançando com a cigana animada que levanta a saia. De costas para a cozinha, graças a Deus.

Não sabe bem como, Regina Célia chega em casa e no dia seguinte Regina Célia só pensa no Anjo. Tenta recompor os fragmentos de um baile de carnaval tão incrementado que termina em amnésia. Os amigos telefonam e todos têm histórias engraçadas para contar. O Ciclista dormiu no banheiro. O alemão desmaiou no sofá. 

Às quatro da manhã todos os convidados estavam em volta do aparelho de som discordando quanto à escolha da próxima música. O extraterrestre despedia-se do mundo inteiro e meia hora depois lá estava ele ainda, dançando. Quase que a Pantera cai no colo do Zorro. 

A bailarina não chegou em casa até hoje. Quem era aquela figura? Qual? A cigana erótica que levantava a saia? Louca! Imaginem o marido. Ele nem liga. É super na dele. Cigana erótica é casada? É. Valha-me Deus, com quem? Ué, com aquele cara alto, bonitão, barbudo. O Anjo!!

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