Livre divulgação, desde que citada a autoria.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Viver sem

Carmem Lúcia nasceu primeira neta e teve direito a todos os xodós de inauguração das passagens. Transformou, de uma só tacada e substancialmente, mocinha em mãe, mãe em avó, pai em avô, irmãs em tias, marido em pai, reclassificando toda a ordem de seu pequeno universo.
Carmem Lúcia adolescente contestou toda a família e teve a sorte de completar quinze anos no ano de mil novecentos e setenta, ficando por conseguinte entre uma geração e outra: nem tortura nem shopping. Achava que a guerra fria poria um fim no mundo e, justamente por isso, aproveitava-o feito um doce único e último num naufrágio.
Dos noventa e nove namorados que teve só três deixaram marcas. A paixão de Carmem Lúcia durava o tempo do frio na barriga.
Finalmente aquietou-se com o centésimo namorado e então deu à luz o casal de filhos mais tenro e íntegro do mundo e que constitui hoje sua inteira família visto que o arsenal de parentes, um a um, por razões diversas e alguns precocemente, morreram todos.
Pai carinhoso, marido caseiro, o homem que Carmem Lúcia escolheu para ter um par de filhos era frio. Só se interessava por ela quando ela fingia que se interessava por outro. E foi assim – dormindo com outros – que manteve acesa a fraca chama do relacionamento durante quinze longos anos sob o vento fino da rotina. Nesse acordo tácito e doído viveram debaixo do mesmo teto até que Carmem Lúcia não aguentou mais e caiu em profunda, inabalável depressão.
Porém, a roleta da genética, a raspadinha do zodíaco, mais a loteria de ter sido o primeiro bebê de toda uma família haviam totalizado a circunstância que fez de Carmem Lúcia – sempre – uma pessoa com extrema vocação para a alegria.
Exatamente por causa disso, quando o apartamento novo ficou pronto, de malas e bagagens, Carmem Lúcia deixou o marido exatamente onde ele estava e se mudou sozinha com os filhos. Pensou: Se amor é isso, prefiro viver sem.
Alegre, cedeu os quartos maiores para os meninos e decorou o seu próprio com sofá-cama de solteiro e mesa de escritório, computador, som e muitos livros. Ajeitou-se sem muito drama na sua nova vida de mulher sem marido e com muito menos aborrecimentos.


Marco Antônio


Marco Antônio foi temporão caçula numa prole que com ele completou sete meninos. Seu nascimento tardio rejuvenesceu a família, solucionou todos os conflitos matrimoniais que seus pais começavam a partilhar no dia-após-dia de quase vinte anos de casamento. A tarefa de criar os primeiros seis filhos foi encerrada com a independência prematura de todos os rapazes que, involuntária e inevitavelmente, saíram de casa com sustento próprio. Deixaram os pais orgulhosos, porém frente a frente, como dois irmãos incestuosos, justo no momento em que começavam a envelhecer para sempre e sem remédio.
O nascimento de Marco Antônio foi vida nova. Quis o destino que o menino - nascido numa família na qual todos, parte de pai e de mãe, eram pessoas tímidas, discretas e reservadas – saísse espontâneo, brincalhão e beijoqueiro. Por causa dele os parentes criaram o hábito desajeitado e atrasado de dar dois beijinhos ou até abraçar-se em ocasiões de aniversário e outras datas.
Inexplicável geneticamente, Marco Antônio quando tinha que chorar berrava, quando estava feliz pulava e não tinha papas na língua. Desde muito cedo, com o seu temperamento alegre, agrupou a família em torno de si porque, numa estirpe de sérios, havia finalmente aparecido alguém espirituoso e engraçado.
Foi um adolescente tranqüilo. Com a terceira namorada casou-se e teve quatro filhos homens. Com a esposa viveu – sempre e desde o primeiro dia – numa calma daquelas que só privilegiados na roda da fortuna desfrutam e às vezes apenas por curtíssimos períodos de tempo.
Cresceu numa família que se reaprendeu carinhosa e confidente, e que manteve o hábito – ancestral, atávico – de deixar a morte para o último minuto.
O resultado foi que aos cinquenta anos era cercado por um séquito de tias, tios, avós, primos, sobrinhos, afilhados de todos os lados, um mundo de velhos, moços e crianças orbitando.
Ninguém reparou direito quando nem sabe dizer o porquê, Marco Antônio, desde pequeno e até hoje, primeiro por brincadeira depois com serenidade, lê a mão das pessoas. Sem mestre nem livros, distingue a linha da vida dos traços referentes a puros acontecimentos, decifra a marca do caráter e o sulco das paixões predestinadas e ainda alerta quanto a interrupções bruscas merecidas e desvios necessários.
E foi assim – lendo mãos – que manteve cheia a casa e coesa a família, coesa e aconselhada.
De segunda à sexta trabalhava na Avenida Presidente Vargas de oito às oito como todo mundo e domingo era dia de bolo, feijoada, doce de laranja e mãos espalmadas.
Na copa pequena que dava para o quintal lotado de crianças, interpretando linhas e aconselhando sobrinhos, Marco Antônio passava os domingos.


Carmem Lúcia


Foi simplesmente para ajudar a passar os domingos (trabalhava muito a semana toda) que Carmem Lúcia começou a pintar potes de cerâmica com linhas sinuosas.
Durante três natais consecutivos, todos os parentes e amigos de todos os colegas de todos os escritórios do prédio baixo na Avenida Presidente Vargas onde ela passava suas oito horas diárias foram presenteados com lindos potes de cerâmica pintados pela mão de Carmem Lúcia. A vida é longa e existem muitos domingos.
Quis o destino que o gerente do setor de treinamento da empresa onde Carmem Lúcia trabalhava tivesse uma tia gringa que ficou perdidamente apaixonada pelas linhas enxutas, ramificadas, brasileiras e abstratas, minuciosamente desenhadas nos potes de cerâmica que Carmem Lúcia pintava nos dias imensos da vida que lhe sobravam.
Desse Natal em diante todos os potes de todos os domingos tiveram destino certo e estrangeiro.
Seu quarto pequeno transformou-se num ateliê moderno, com ar-condicionado e música ambiente, onde solitariamente criava traços de rugas finas e elaborava dobras desalinhadas, compondo mágicos desenhos de fios finos, como raízes e como veias, artísticas infiltrações que davam vida aos potes coloridos e pulsavam sob a cerâmica.
Carmem Lúcia dobra sua produção e passa a pintar também aos sábados.


Marco Antônio


Quando os filhos de Marco Antônio começaram a namorar firme e a não parar em casa, ele e sua mulher caíram em profundo abatimento.
O casal, pela primeira vez e muito tarde, se encontrou sozinho à mesa olho no olho e no silêncio, sem o barulho dos filhos interlocutores e sem assunto próprio.
Havia algo escrito nas estrelas. Quis a distração e as conjunções do zodíaco que numa das raras vezes em que fizeram amor e sem precaução, ela engravidasse à beira da menopausa e desse à luz uma curiosa e finalmente menina com um olho castanho e outro amarelo, ramo verde novo em já frondosa família, que só dormia de houvesse alguém no quarto e acordava por pura intuição, aos berros, quando era deixada sozinha.
Ficou então decidido em comum acordo e com alívio que o berço iria para o quarto do casal. Tudo ficou duplamente resolvido: o bebê dormia feliz e a dupla ressonava em paz.
Marco Antônio prevê o futuro de um sobrinho na constelação de três linhas perpendiculares, a previsão se concretiza, e são tantos os consulentes que ele passa a ler mãos também aos sábados.


Carmem Lúcia e Marco Antônio


Carmem Lúcia conheceu Marco Antônio numa sexta-feira à noite, agachada sujando as mãos de poeira num sebo na Avenida Presidente Vargas, no centro da cidade, pescando livros, entre teias, traças e cupins, garimpando dedicatórias de canetas-tinteiro dedicadas àqueles que – por morte ou por quê? – ficaram sem seus livros.
Bem vestidos e ajoelhados, dirigiram-se um ao outro como se já fossem velhos conhecidos, um do outro.
Reza a Cartilha do Bom-Senso, logo na terceira página, que aqueles que se conhecem de joelhos num sebo, em tal posição de humildade ante a Literatura, não necessitam apresentações e podem falar à vontade, sem cerimônia, um com o outro. Circunstância tão íntima dispensa formalidades.
Um e outro, os dois se interessaram pelo mesmo livro. Não pelo autor (desconhecido de ambos), nem pelo título (até esqueceram), sequer pelo conteúdo (nunca souberam) e sim pela primorosa caligrafia da dedicatória, igual a todas as caligrafias de todas as avós de antigamente.
Um notou o interesse do outro pelo livro, quiseram ser gentis e ninguém o comprou. Conversaram apenas sobre uma coisa: o traço.
Por um instante, entre as estantes apinhadas de livros, estiveram tão próximos que um pôde cheirar o hálito do outro.
De relance, ele reparou que ela tinha seis pequenos e empinados. De soslaio, ela constatou que ele tinha pés grandes. Quando a grade velha e emperrada fez um estrondo anunciando que era hora de fechar, eles se levantaram com câimbras nas pernas e desajeitadamente. Ele flagrou o instante em que o botão mais alto da blusa dela desabotoou. Seus olhos apontaram para o vale preciso e ela entendeu, mas não abotoou. Ela viu que ele ficou excitado e ele viu que ela viu.
Como não compraram nada, não puderam nem parar em frente ao caixa. Foram para a calçada noturna onde, desconcertados e taquicardíacos, despediram-se meio zonzos e dizendo boa-noite.


Marco Antônio e Carmem Lúcia


Segunda-feira na hora do almoço e depois do expediente, Carmem Lúcia e Marco Antônio andam sobressaltados pelas ruas do centro da cidade focalizando, um por um e detalhadamente, cada rosto da multidão com esperança de rever o outro.
Terça-feira na hora do almoço e depois do expediente, Carmem Lúcia e Marco Antônio andam sobressaltados pelas ruas do centro da cidade focalizando, um por um e detalhadamente, cada rosto da multidão com esperança de rever o outro.
Quarta-feira na hora do almoço e depois do expediente, Carmem Lúcia e Marco Antônio andam sobressaltados pelas ruas do centro da cidade focalizando, um por um e detalhadamente, cada rosto da multidão na expectativa de rever o outro.
Quinta-feira na hora do almoço e depois do expediente, Carmem Lúcia e Marco Antônio atravessam a Avenida Presidente Vargas focalizando, um por um e minuciosamente, cada rosto da multidão com esperança de rever o outro.
Sexta-feira na hora do almoço e depois do expediente, Carmem Lúcia e Marco Antônio andam atentos e sobressaltados pelas ruas do centro da cidade focalizando, um por um e detalhadamente, cada rosto da multidão com esperança de rever o outro.

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