Livre divulgação, desde que citada a autoria.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O Pato

O menino não conhecia o pai. A família evitava o assunto. O padrasto fazia as vezes. O padrasto lhe deu uma coleção completa de tias. O menino chamava o padrasto de pai. E assim ficou.
O pai ausente tinha fama controvertida. Canalha para alguns. Brilhantemente boêmio para outros. A família do padrasto ela alegre e ria ã toa. Três tias, doze cervejas e um violão bastavam para virar uma festa. As duas solteiras adoravam cantar em duas vozes e a casada recitava poemas longos que contavam histórias rimadas e tinha uma memória de elefante quando se tratava de poesias. Falavam de tudo e de todos, verdadeiras atrizes desperdiçadas, gesticulavam, remedavam os outros, qualquer assunto servia desde que alguém risse e para que nunca houvesse silêncio.
Às vezes alto, às vezes baixinho, às vezes por metáforas, dependendo de onde estivessem as crianças e de qual fosse o assunto. Adoravam falar da vida alheia e também de sexo.
Um dia o menino ouviu a tia mais velha dizer com desdém:
- Esse, não vai ter onde cair morto.
E teve certeza que esse era seu pai.
Naquela época não existiam tantos pais ausentes como hoje em dia, estávamos no ano de mil novecentos e cinqüenta e oito.
O verdadeiro pai existiria em alguma cidade pequena da Região dos Lagos e lá teria um barco. O trabalho do pai consistiria em passear com turistas excêntricos, conhecer lindas mulheres, constituir e abandonar várias famílias. Cochichava-se que o menino teria alguns irmãos estrangeiros.
O pai seria ruivo, alto e forte, simpático e bronzeadíssimo, e teria dificuldades com o correio. O menino era ruivo e muito alto para sua idade (dez anos) e por causa disso o pai teria que ser muito ruivo e muito alto, tivesse a idade que tivesse.
O pai pensaria nele, menino, adoraria revê-lo mas a família inteira não deixava. E havia um retrato: pai e menino em mil novecentos e cinqüenta de calção preto grande nas pedras do arpoador vazias. Uma só vez ali estiveram, o menino e seu pai. O menino não tinha lembrança mas tinha a foto.
Ou o pai seria um marinheiro inteligente e alegre, que juntava todos os tostões para, um dia, comprar uma longa passagem e vir à cidade do Rio de Janeiro matar seu maior desejo: rever seu filho.

No ano de mil novecentos e sessenta e três Carlos Henrique desistiu dessa história (o nome do menino era Carlos Henrique e tinha então quinze anos). O pai tinha morrido para sempre. Só um pai que morre para sempre abandona assim um menino.

Carlos Henrique rezou pela alma daquele pai perdido talvez num naufrágio durante uma ventania. Pena um pescador morrer assim tão jovem e deixar um filho no mundo sem pai para imitar e para pescar de novo no Arpoador, então com muitos anzóis pontilhando as pedras seguras.

Naquele tempo os rapazes iam à missa quando a família era católica e freqüentava a igreja. Que Deus encaminhe para o mais lindo ponto de Luz do Universo o Espírito do Pai e que Deus Todo Poderoso perdoe as injustiças e as maledicências da família que teimava em cochichar mal da boemia do pai. Nosso que estais no Céu.

Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Livrai-nos do mal amém.
Em mil novecentos e setenta, com vinte e dois anos, Carlos Henrique casou-se, teve sua própria filha ruiva e se esqueceu daquele pai. Seu padrasto virou o avô da menina que ignorava que não havia laços de sangue nesse parentesco.

Mesmo sem seu pai, tudo deu certo na família de Carlos Henrique. Era uma família sem muitos recursos financeiros porém bastante unida e engraçada, que se reunia para falar sem parar, tocar violão e cantar, recitar longas poesias e contar casos gozados, e tudo ao mesmo tempo.

Em fevereiro de mil novecentos e oitenta a filha de Carlos Henrique, que era muito alta para sua idade e se chamava Adriana, viajou com a família de uma amiguinha para Búzios. Adriana voltou bronzeada e feliz, com camisetas de presente para todos e muitas fotografias.

Numa das fotos, a câmara enfocava Adriana sorrindo em primeiro plano acocorada no alto das pedras da Praia da Ferradurinha tendo ao seu lado uma gaiola com um pato dentro. Atrás de ambos, via-se um último plano a Praia dos Amores distante e ensolarada e em segundo plano um par de pernas cortadas do corpo pelo enquadramento.
- Esse pato – disse a menina – também se chama Carlos Henrique.
Apontou para as pernas fora de foco e concluiu:
- É o nome do filho desse moço. Ele disse que nunca mais viu o filho.

Carlos Henrique pôde ver as pernas ruivas e bronzeadas e os pés descalços e cheios de areia do seu pai. Meses depois, mais por brincadeira do que por sentimentalismo, roubou a foto do pato chara e guardou em seu próprio álbum de infância, ao lado da foto em que estava no Arpoador de mãos dadas com seu pai de corpo inteiro. Eram as mesmas pernas.

Em mil novecentos e oitenta e dois, às gargalhadas, depois de uma série de cervejas com a família em seu apartamento pequeno, pôde contar a história toda. As tias foram as que mais se divertiram. Até o padrasto caiu na risada. Carlos Henrique subiu numa cadeira, abriu a parte de cima do armário, onde geralmente guardamos o que não serve para nada mas que pode um dia servir para alguma coisa, fisgou as duas fotografias e contou até para a própria Adriana a divertida coincidência. Todos riram a valer.

A menina, brincalhona, depois de xerocar e ampliar as duas fotos, recortou e montou uma miscelânea: pegou uma terceira foto do Arpoador no verão apinhada de gente e colou a foto do pai com cara de pato e a foto do pato na gaiola com a cara do pai. Uma obra de arte surrealista. Todos juntos deram gostosas risadas.

De vez em quando, Carlos Henrique, ou Adriana, ou alguma tia contava a tal história do pato e das pernas, mostrava a foto-montagem e acrescia detalhes inventados só pra ficar mais gozado. E mais gozado ia ficando à medida que Carlos Henrique envelhecia e suas pernas iam ficando parecidas com as do pai da fotografia.

Uma das tias – ninguém lembra qual – observou que o pato era grande demais para a gaiola, o que significava que por descuido, desatenção, negligência ou perversão, o pato havia crescido demais lá dentro e estava preso, engaiolado para sempre. Para retirá-lo dali, se é que algum dia retiraram, com certeza tiveram que destruir a pequena gaiola.

Quando Adriana, que era muito alta, casou e saiu da residência dos pais, um apartamento mínimo, para sua própria, outro apartamento mínimo, todos rolaram de rir lembrando a história do pato grande preso na gaiola pequena.
De tão contado, o caso virou motivo de chacota.
Adriana brincava:
- Depois da terceira dose... lá vem... aposto que alguém vai contar a história do meu tio pato.

A história do tio pato era engraçada mas como havia muitas histórias engraçadas na família acabaram esquecendo essa. Em junho de mil novecentos e noventa e oito aconteceu o pior: ninguém achou a mínima graça quando, num domingo em que todos se reuniam no apartamento pequeno, o filho ruivo de Adriana, um alto e simpático guri de cinco anos, ouviu a campainha, correu para abrir a porta e voltou saltitando com saltitam as crianças felizes, dizendo:
- Mãe, tem um velhinho magrinho e careca de mala lá na porta dizendo que é teu avô.

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